O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
«Nas universidades, o
predomínio de membros do clero entre o seu corpo docente e discente, a vivência
diária de professores e alunos, o tipo de cursos e curricula, a orientação
científica dominante fazem destas instituições um espaço de produção e de
transmissão do saber submetidas a certo tipo de limites e condicionamentos. Acresce
que a produção e difusão de obras culturais, qualquer que seja a sua natureza,
estão sujeitas, através das visitas às livrarias e aos Índices de Livros Proibidos,
à censura e ao controlo estritos da Inquisição (maldita).
Um dos aspectos da vida
quotidiana profundamente marcados pela religião prende-se com os hábitos
alimentares. A Igreja estabelece permissões e proibições, calendariza a
comercialização e ingestão de alimentos. O não cumprimento da abstinência na
Quaresma é punido na jurisdição civil. Em contrapartida, a rejeição de
alimentos consumidos normalmente por cristãos é motivo de perseguição religiosa,
sob a acusação de judaísmo ou maometismo.
Permissões e proibições
em matéria alimentar interferem enormemente na vida social e nas condições de
vida das comunidades. Formas de vigilância e repressão, elas têm também
reflexos sobre o custo de vida, de que é exemplo o aumento dos preços do peixe
na Quaresma e a sua venda muitas vezes em condições impróprias para o consumo.
Quem melhor caracteriza esta situação é Erasmo
de Roterdão, ao observar:
- ...um montão de gente para quem o essencial da piedade se liga a lugares, a vestes, a alimentos, a jejuns, a gesticulações, a cantos e que se apoiam sobre todas essas coisas para julgar o próximo, à margem dos preceitos evangélicos... (Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura)
Outro elemento do
quotidiano importante são as práticas de higiene, que parecem, contudo, ser
mais condicionadas pela vertente material que pela espiritual. Este aspecto é
aquele em que é mais notória a distinção social. O conceito de higiene da Antiguidade
Clássica, com banhos regulares em estabelecimentos públicos ou em
privado, altera-se completamente ao longo da Época Medieval, e mais
ainda na Época Moderna. Contribuem para esta mudança, por um lado, o
medo generalizado do contágio de doenças altamente mortíferas como a peste e a
sífilis, ou ainda as superstições ligadas ao próprio corpo. Por outro lado,
dá-se o encerramento dos banhos públicos pela Igreja, com base no argumento de
serem ambientes utilizados para a prática da prostituição e de outros
comportamentos sexuais proibidos. Pesa ainda a desconfiança da água em geral,
originada pela consciência de que a água insalobra é uma fonte de todo o tipo de
moléstias. Por seu turno, os próprios médicos desaconselham o banho, sob o
pretexto de que, dada a porosidade da pele, o banho ajuda à propagação das
doenças, o que leva as populações a olhar a sujidade que os recobre como uma
armadura, a sua cota de malha contra esse terrível inimigo que é a peste. Num
universo sem antibióticos ou analgésicos, todas as armas são válidas na luta
diária contra a doença e o terrível e prolongado (e as mais das vezes fatal)
sofrimento que ela traz.
Profundamente associadas
a esta problemática estão as concepções acerca do corpo e, recorrentemente, as
concepções sobre o sexo. No que diz respeito ao prazer físico e à actividade
sexual, não existe qualquer diferenciação social. Podemos dizer que perante os
constrangimentos religiosos sobre estas matérias, todos são iguais. O corpo é
material, terreno e carnal e, segundo a ética cristã, deve funcionar apenas
como invólucro da alma, e meio de procriação da espécie. Mas é também, e talvez
mais frequentemente, fonte de pecado, apelo constante aos prazeres carnais, à
sensualidade e à volúpia.
Durante o século XVI,
desenvolve-se uma verdadeira campanha contra todas as formas de nudez,
sexualidade, ou prazeres carnais vividos por si só, sem a intenção de procriar,
apoiada inclusivamente pela acção inquisitorial. Esta vigilância rigorosa
envolve os comportamentos do homem comum, mas também os valores estéticos da
arte, e assistimos ao progressivo desaparecimento da nudez na pintura e na
escultura. À perfeição e realismo anatómicos dos artistas da Renascença,
sobrepõem-se agora véus e panejamentos, instalando-se um exacerbado pudor sobre
todas as coisas concernentes ao corpo e à sensualidade». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a
Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação
de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Porto, 2002.
Cortesia da U. do
Porto/JDACT