quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Alma Secreta de Portugal. A Reabilitação Científica do Esoterismo. «Aliás, afirma claramente que o homem tem corpo, alma e espírito, ou seja, o ternário, sem expurgar o mundo do meio, da alma»

Painel que se encontra por cima do altar da Capela Templária da Quinta da Regaleira. Maria com os seus braços cruzados simboliza a alma harmonizada pronta a receber a luz do Eu-espiritual.
jdact e cortesia de wikipedia

(continuação)

Entrevista com José Manuel Anes
O Cristianismo Esotérico e a Dimensão Divina do Homem
José: Jean-Pierre Laurant, num livro recente, propõe que, em vez de doutrina interna ou oculta, o esoterismo é a doutrina da constituição oculta divina do homem.
Paulo: Que interessante.
José: É uma hipótese interessante. De facto é um tema recorrente de grande parte do esoterismo. Não posso dizer que é a totalidade, mas de facto essa ideia existe em São Paulo. Ele fala nesse Cristo interior, no Cristo em nós. Essa é a sua questão fundamental.
Paulo: O Cristo e o Pai. Quer dizer só através do Cristo interior se chega à célula de Deus, que habita todo o ser humano, a Centelha Divina, para utilizar um termo da Voz do Silêncio da tradição tibetana, divulgada por H. P Blavatsky e traduzida para português por Fernando Pessoa.
José: A Chispa Divina, ou a Centelha Divina, é um tema dos gnósticos de há dois mil anos, que Blavatsky utilizou como o fez com outros temas do Oriente. A Chispa Divina, o Germe de Luz, a Centelha Divina, são termos dos textos gnósticos referenciados na linha do que estamos agora a falar, na qual São Paulo se inscreve claramente. Para ele, a tarefa principal do cristão é, fazer nascer esse Cristo em nós: Meus filhos, sofro novamente como que dores de parto, até que Cristo esteja formado em vós.
Paulo: Aliás, afirma claramente que o homem tem corpo, alma e espírito, ou seja, o ternário, sem expurgar o mundo do meio, da alma.
José: Há um místico do século XVI, Angelo Silesius, que tem uma frase muito interessante: E a ti que te importa que o Cristo nasça mil vezes em Belém, se ele não nascer uma única vez dentro de ti. Integra um texto muito interessante que está traduzido em português com o título A Rosa sem Porquê - um dos tradutores é José Augusto Mourão. É um texto fundamental de esoterismo e mística cristãos e aponta para tudo aquilo de que temos vindo a falar, para essa dimensão sem a qual, mesmo que praticando os ritos exteriores mais piedosos, nada se passa na verdadeira estrutura do homem. Essa é a questão fundamental.
Paulo: É uma questão atemporal...
José: É o tema recorrente do esoterismo. O homem encerra dentro de si uma dimensão espiritual, divina. Repare: quando há pouco dizia que o esoterismo se constituía no Ocidente por expulsão de alguns temas... Um dos temas que foi expulso da teologia é essa divinização do homem.
Paulo: Com o advento do cristianismo opõem-se dois tipos de homens. Um, o homem clássico, e até o homem oriental e o celta, que é um homem-protagonista, que chegava a Deus pelo seu caminho, pela sua vontade, que acreditava no seu esforço individual para chegar a essa divindade, reconhecendo-a dentro e fora de si. O outro, o homem da Cristandade Ocidental, que está à espera da Graça como algo de exterior e isso, como disse Jung, paralisa-o.
José: Sem pôr em causa a Graça, os gnósticos sempre disseram que se não houver trabalho interior, trabalho sobre nós próprios, não se chega lá. Os gnósticos, os valentinianos, por exemplo, até faziam uma tipologia do homem que é muito chocante para as nossas mentalidades do Ocidente moderno e democrático, segundo a qual havia os pneumáticos, que eram os espirituais, os psíquicos e os hílicos. Os hílicos eram os materialistas, que nem sequer tinham alma, morriam e tudo acabava. Os psíquicos tinham um germe e ainda podiam lá chegar através do seu esforço. Os espirituais, os pneumáticos, tinham esse germe, decididamente. Encontramos esta doutrina também no Oriente, esta tipologia dos três níveis: o taoísmo fala do homem perfeito, etc. Mas, atenção, em relação aos gnósticos, o seu conhecimento não era um conhecimento meramente intelectual, mas sim um conhecimento espiritual. E, para chegar aí, não interessa propriamente se a pessoa tem ou não um curso universitário, mas é necessário, isso sim, chegar à simplicidade, conquistar um espaço interior onde o ser possa desabrochar.
Paulo: Observa-se que as diversas igrejas cristãs do Ocidente perderam, simultaneamente, o conceito ternário, corpo, alma e espírito, e a ideia da estrutura iniciática, desse conhecimento espiritual que emerge através do esforço individual, havendo, naturalmente, vários níveis de espiritualidade. Mas não, foi tudo nivelado, criando-se assim uma forma de comunismo espiritual...
José: Sim. É uma forma de se ser simpático para as pessoas, de não as assustar, mas também é uma forma de as enganar. Na realidade, a pessoa é extremamente responsável pela sua demanda espiritual, e convencê-la de que, à partida, ela já assegurou o acesso à dimensão transcendente é muito mau. Se forem bonzinhos, se cumprirem os rituais está tudo assegurado... Não, é preciso mais qualquer coisa, muito mais, mesmo. Mas esse muito mais está acessível aos simples, até, estar mais acessível a esses simples que conseguem fazer a simplicidade depois da complexidade . Aí é que está a questão.

Representação dos jacarés míticos segurando um búzio que, invertido, recorda os sons dos mares celestiais. Simbolizam os guardiões do umbral
Quinta da Regaleira. 
jdact

In Paulo Loução, A Alma Secreta de Portugal, Ésquilo Edições & Multimédia, 2004, ISBN 972-8605-15-3.

continua
Cortesia de Ésquilo/JDACT