terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A Casa do Pó. 1986. Fernando Campos. «Não sei onde fui criado na minha primeira infância, não conheço sequer qual a terra onde nasci. Sou como uma árvore que, apenas despontou no viveiro, logo foi desarreigada e transplantada e jamais há-de conhecer a sua paisagem»

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O medalhão de Ouro
‘... e tal como e nave que atravessa a água ondeante: dela, assim que passou, não é possível achar o vestígio nem a senda da quilha nas ondas... In Sap.,5.10

«Alonga o caminheiro atrás os olhos, a avaliar a distância percorrida. Vão-se-lhe esbatendo e esfumando os contornos e as cores da paisagem, até por fim não poderem ser fixados na retina... Também no percurso da vida com o avançar da idade se vai esmaecendo e esvaindo, na retina da memória, a notícia das coisas passadas. Procuro ir ao fundo do tempo, vasculhando nas minhas recordações, numa tentativa de isolar na infância o primeiro momento, a primeira circunstância em que tive consciência de mim, de que era um ser vivo com personalidade própria, isto é, com uma vontade e um pensamento que não era o dos outros, consciência de que tinha a minha sombra. Esta expressão especialmente me intriga. Ando à volta dela, buscando localizá-la no tempo e no espaço sem o conseguir. Tenho todavia a sensação de que alguém, uns olhos sábios e penetrantes, algures, em certa altura, ma imprimiu na alma e me impressionou para sempre.
É como uma voz que vem de longe e que eu não sei identificar: quem não fazia sombra não era ninguém; visse como até amais pequenina das formigas arrastava colada ao corpo a sua sombra...
Não bastava que toda a minha vida forças ocultas, que eu então nem sequer sonhava existirem, se empenhassem constantemente em me confundir com a multidão, se esforçassem por me tirar a minha individualidade, a minha sombra. Vem também agora a memória, enfraquecida pela idade e a distanciação, abrir graves lacunas na reconstituição do que foi a minha infância. À medida que eu avançava na vida, havia quem, e igualmente eu sem o pensar, fosse apagando os vestígios dos meus passos.
Como restos de um cataclismo, de um naufrágio, de um incêndio, ficaram-me no entanto desses tempos alguns relíquia isolados que agora procuro colar, como cacos de uma baixela partida, no grande painel da minha existência. Um deles é o vago sentimento de contínuas mudanças de lugar e de pessoas na minha mais remota puerícia, mudanças que, ao anularem, creio que acinte, a minha fixação afectiva, criaram-me na alma e no coração uma constante necessidade da presença humana, o que, moldando o meu carácter, me levava a procurar o convívio das pessoas e a ser extremamente comunicativo e afável com elas, ou, quando em grupo, muito exuberante e até irreverente. Mais de uma vez me aconteceu passar por uma terra cheia de movimento e de vida e de ruído que em primeira mão visitava. De repente faz-se dentro de mim um estranho silêncio e as casas, as árvores, esta ou aquela particularidade, ganham um agressivo e quase doloroso relevo e provocam-me a nítida impressão de que tudo aquilo me é familiar, de que já ali estive não sei quando. Vêm-me então ao espírito certas leituras, que nós franciscanos tanto estimamos, do sábio Platão. Será que esta é uma das suas famosas reminiscências?
Não sei onde fui criado na minha primeira infância, não conheço sequer qual a terra onde nasci. Sou como uma árvore que, apenas despontou no viveiro, logo foi desarreigada e transplantada e jamais há-de conhecer a sua paisagem. Sou como a planta que nasceu de uma semente germinada numa poça de água e que, mal criou raízes, se plantou num vaso e, dentro de casa, tanto ornamenta a janela do nascente como a do poente. Não deve ter sido por acaso que me fizeram ingressar na Ordem dos andarilhos, como em muitos sítios e há muito tempo, por essa Europa fora, são conhecidos os irmãos de São Francisco. Sempre me foram familiares as amendoeiras das terras do meio-dia, as suas figueiras, as suas alfarrobeiras; os sobreiros e azinheiras das planícies calcinadas de além-Tejo, com suas longas e estreitas sendas e caminhos anilados à distância por alas de pinheiros mansos; as suas vilas e aldeias de casinhas térreas branquejando arrimadas ao castelo tutelar; as acácias e mimosas de fresca e farta sombra da serra de Ossa; as lezírias das ribas do rio, desde Santarém a Lisboa, verdejantes e ondulantes de searas a perder de vista, onde aqui e além se destacam as manchas escuras dos bois a pastar e o relevo das matas, ou desoladamente alagadas pelas cheias. Trago nos olhos as dunas da península de Tróia, as doces baías azuladas em que se vão precipitar as alturas da Arrábida, os fraguedos do cabo Espichel, o largo estuário do Tejo, os ululantes ventos de areia do Guincho, a imponência do arvoredo de Sintra, onde temos um conventinho de capuchos. Mas, como se do alto dessa formosa serra olhasse o horizonte que corre e foge para setentrião, vão-se-me delindo na lembrança e tornando indefinidas as linhas, as formas, as minúcias topográficas de montes e vales, florestas, povoados, rios, até aos sinceirais do Mondego». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986.

Cortesia de Difel/JDACT