«E aqui para nós, que
nenhum rabecão nos ouve, a verdade é que não há nada que chegue a uma filarmónicasinha
bem ensaiada, bem fardada, a acertar bem o passo por essas ruas da cidade ou pela
estrada fora, a estrada que leva da vila onde ela tenha a sua sede à aldeia que
a convidou para lá lhe ir tocar à festa. Rapazes, ela aí vem!
É a dos regeneradores ou
é a dos progressistas? Seja qual for, tanto faz ao caso. É a filarmónica! A política
pode ter música, mas a música é que não tem política. Euterpe é extrapartidária.
Tanto nos faz que a filarmónica seja a União
e Capricho, que anda toda a noite a tocar quando os amigos do Fontes
venceram as eleições, como seja a Reciprocidade
e Harmonia, que anda a tocar toda a noite se o triunfo foi todo para a gente
do Braamcamp. Toquem eles na perfeição, que é o que a gente quer.
Não há banda militar que
os desbanque, nem na certeza da marcha em alas paralelas, nem no irrepreensível
asseio do fardamento, nem no empenho com que foi puxado o brilho aos metais e o
lustro às botas, nem no compasso, nem no desempenho.
Reparem vocês para a seriedade
daquele trombone; olhem agora o gosto com que o clarinete chupa a sua parte como
se fosse a chupá-la de uma cana-de-açucar; vejam-me as bochechas deste cornetim
como luzem, e a graça pastoril com que este outro cospe no buraquinho da flauta!
O músico da banda regimental toca bem porque é obrigado a tocar bem. Se desafinar,
o coronel castiga-o. Toca admiravelmente, porque tem medo da pele. O sócio da filarmónica,
não. Quando se chego a dizer dele que toca que é um mimo, só ele, e os vizinhos
dele é que sabem quantas noites lhe foi preciso passar em claro para acertar com
aquela mazurca ou com aquelas variações, que são o beijinho dos reportórios
de arraial, das tardes de domingo no jardim público, das noites de nortada do l.º
de Dezembro em frente do Club
Patriótico, todo iluminado a lanternas com velas de estearina. Chega a tocar
admiravelmente, por brio.
Existe na Outra Banda
uma filarmónica que se chama a Incrível Almadense. Bem posto nome! Mas
o exclusivo de incrívell que essa se arrogou e que hoje já ninguém lhe
contesta, é que não tem razão de ser: porque
incríveis são, em boa verdade, todas as filarmónicas de Portugal. Incríveis,
por tudo aquilo que nelas há de força de vontade, de obediência ao alamiré, de sentimento
do compasso, de pertinácia no ensaio, de alinação e variado reportório. À
frente da filarmónica, quando ela passa em alas, de cabeça branca vincada, cabeça
alta, lira de oiro no boné de pala, pimpante e reluzente, só deixa o preconceito
que corra a garotada expansiva, pulando de contente.
Mas atrás da filarmónica
todos nós corremos, e vamos para onde ela for, sob o céu azul e o dardejante sol,
entre explosões de bombas, risadas de foguetes, estoiros do morteiros, para a romaria
e para o facto histórico, para a procissão e para os toiros, para o bodo e para
a representação nacional, para o baile campestre e para a reivindicação. E isto
hoje, ontem, amanhã e sempre! Sempre, não!
Porque lá vem um dia em que as coisas se trocam, e em vez de sermos nós que vamos
atrás da filarmónica, é ela, a filarmónica, que vai atrás de nós: a calça preta,
a lira do boné envolta em crepe, o bombo silencioso, vagaroso o passo, e os
metais, embaciados, a soluçar Chopin…
A marcha fúnebre de Chopin!» In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria
de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of
Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.
Cortesia de University of Toronto/JDACT