«Além
disso, é notória a similitude decorrente de uma focagem temporal que permite ao
emissor lírico contemplar os dias do passado a partir do arrependimento do
presente, de tal modo que os seus versos se fazem exemplo dissuasor para outros
amantes. Para além do modelo primigénio de Petrarca,
Em
quanto quis Fortuna que tivesse tem reminiscências do soneto de Juan
Boscán Nunca d’Amor estuve tan
contento:
Nunca
d’Amor estuve tan contento
que’n
su loor mis versos ocupase;
ni
a nadie consejé que s’engañase
buscando
en el amor contentamiento.
Esto
siempre juzgó mi entendimiento:
que
d’este mal tod’hombre se guardase,
y
así, porque’sta ley se conservase,
holgué
de ser a todos escarmiento.
¡O
vosotros que andáis tras mis escritos
gustando
de leer tormentos tristes,
según
que por amar son infinitos!,
Mis
versos son deciros: “¡O benditos
los
que de Dios tan gran merced huvistes
que
del poder d’Amor fuésedes quitos!”
Tais
reminiscências dizem respeito, de novo, à utilização da forma vós, numa apóstrofe aos leitores que
ocupa, em ambos os textos, o mesmo lugar, no começo do primeiro terceto. O
poema camoniano poderá até conter alguns ecos dos versos iniciais da composição
Qui
no és trist, de mos dictats no cur, do escritor valenciano Ausiàs
March, designadamente no que toca ao convite ao público para que leia os
textos consoante a intensidade do seu próprio sentimento amoroso:
Qui
no és trist, de mos dictats no cur,
o
n algun temps que sia trist estat,
e
lo qui és de mals passionat,
per
fer-se trist no cerque lloch escur:
llija
mos dits mostrans penssa torbada,
sens
algun art, exits d’hom fora seny,
e
la raó qu en tal dolor m’enpeny
Amor
ho sab, qui n’és causa estada.
Enfim,
seria possível identificar algumas afinidades entre o poema camoniano e o
soneto Huir procuro el encarecimiento, do autor espanhol Hernando
de Acuña. Observe-se, por um lado, o tema da intenção de cantar apenas
verdades, e não enganos, e, por outro lado, os propósitos dissuasores:
Huir
procuro el encarecimiento,
no
quiero que en mis versos haya engaño,
sino
que muestren mi dolor tamaño
cual
le siente en efeto el sentimiento.
Que
mostrándole tal cual yo le siento
será
tan nuevo al mundo y tan extraño,
que
la memoria sola de mi daño
a
muchos pondrá aviso y escarmiento.
Así,
leyendo o siéndoles contadas
mis
pasiones, podrán luego apartarse
de
seguir el error de mis pisadas
y
a más seguro puerto enderezarse,
do
puedan con sus naves despalmadas
en
la tormenta deste mar salvarse.
Quanto
às interpretações críticas de maior relevo, diga-se que Em quanto quis Fortuna que
tivesse foi qualificado por Helder Macedo como o pórtico mais adequado de toda a sua poesia
lírica. Por sua vez, Agostinho Campos, quando ordena a edição Camões
lírico, distingue uma série formada por seis sonetos dispostos
alfabeticamente, o primeiro dos oito grupos que organiza, o qual denomina, com
critério intuitivo, Sonetos prologais.
Eis os seis poemas que selecciona:
Despois
que quis Amor qu’eu só passasse,
em
quanto quis Fortuna que tivesse,
eu
cantarei do Amor tão docemente,
no
tempo que d’amor viver soía,
pois
meus olhos não cansam de chorar e
sospiros
inflamados, que cantais.
In Xosé Manuel Dasilva. Comentário a um soneto (autêntico) de Camões,
‘Em quanto quis Fortuna que tivesse, revista Limite nº 5, Universidade de Vigo
2011.
Cortesia
de Limite/JDACT