«O homem nasceu para viver
em sociedade. Apesar de todos os paradoxos sustentados por João Jacques Rousseau
contra o estado social, é incontestável que só neste estado é que elle se pôde aperfeiçoar
intelectual e moralmente. O selvagem é feroz, cruel e sanguinário. Com as nações
succede o mesmo que com os indivíduos.
Assim como os indivíduos
isolados não progridem, assim também as nações que vivem separadas das outras permanecem
estacionarias. Quanto mais amplas forem as relações sociaes maior será o
desenvolvimento da intelligencia humana. Se o commercio abre o caminho para a civilização
e fraternidade dos povos, é a mais alta cultura litteraria e scientifica que poderá
fazê-las attingir o seu auge. A cultura litteraria, além de ser indispensável a
todo o homem, seja qual fôr a sua posição social, é o factor mais poderoso da solidariedade
universal. Quando as obras litterarias e scientificas em que se revela a maior
pujança do espirito humano estiverem vulgarizadas em todos os países, então a
fraternidade universal não será certamente um sonho vão, prestar-se-ha o culto mais
ardente á liberdade e á egualdade, finalizarão as guerras, que são verdadeiros crimes
sociaes. São os eloquentes escriptores, os sublimes poetas e os eminentes sábios
que mais tem contribuído para o progresso intellectual e moral do género humano;
devemos pois tributar as mais ardentes homenagens a todos os bemfeitores da
humanidade, a todos os grandes homens que a têm honrado com o seu génio litterario,
scientifico ou philosophico.
São raríssimas as
manifestações populares que não são excitadas pelas paixões politicas. Este facto
é um triste symptoma da profunda ignorância que ainda lavra no nosso país. As homenagens
prestadas aos grandes escriptores e aos sábios exímios devem ter por única origem
a gratidão popular pelos relevantíssimos serviços que prestaram, pelos grandes esforços
por elles envidados para instruir e moralizar a sociedade. Bem sei que a politica
é indispensável para o progresso dos povos, mas também é certo que no campo da politica
se põem ordinariamente as paixões partidárias acima dos affectos mais nobres e sublimes
do coração humano, acima do amor da verdade e da justiça, da rectidão e da imparcialidade
que devem caracterizar todo o homem de bem, todo o cidadão honrado e virtuoso. É
um espectáculo assás desagradável o vêr que, no campo da politica vil e mesquinha,
de um lado se encontram homens sempre promptos a adular os poderosos da terra, todos
os tyrannos; seja qual fôr a denominação que se lhes dê; do outro, indivíduos
que, sob a mascara das doutrinas mais avançadas, procuram lisonjear as paixões muitas
vezes ignóbeis e mesquinhas das turbas analphabetas, ignorantes e fanáticas.
O homem que só procura a
verdade e o bem, que não se deixa dominar pelas paixões politicas, que é imparcial
e recto, que ousa fallar ou escrever sem preconceitos contra a profunda
corrupção do seu século e do seu país, que não hesita em vituperar os vicios de
todas as classes sociaes, que não vende a sua consciência no mercado dos
poderosos nem procura illudir a plebe ignorante e fanática, que muitas vezes aplaude
inconscientemente os discursadores frívolos, cujo mérito apenas consiste na
verbosidade vácua e na habilidade para afagar as preoccupações populares, o homem
que considera a mentira um crime, que louva ou vitupera com toda a sinceridade
e justiça, forcejando por não faltar à verdade, que não mercadeja com a sua intelligencia,
que Deus só lhe deu para conhecer o bello, o verdadeiro e o justo, aquelle que assim
procede com toda a dignidade é sempre o alvo das censuras mais acres e injustas,
chega a ser muitas vezes calumniado pelos fanáticos de todas as escolas e de todos
os partidos; mas, no meio d’estas grandes misérias sociaes, ha sempre um grupo
de homens sensatos e moderados, illustrados e honestos, que comprehendem o seu modo
de pensar e de sentir e lhe fazem a devida justiça; quando isto não succedesse,
bastar-lhe-hia a pureza da sua consciência para o consolar, para lhe suavizar as
amarguras provenientes da injustiça dos homens, porque a consciência é para
todo o homem sincero, imparcial e recto a fonte dos prazeres mais intensos e
duradouros, porque é a voz da consciência que o impelle a proseguir denodado e imperturbável
o caminho da verdade e da justiça, sem lhe importarem os murmúrios, os
vitupérios que em volta d'elle possam levantar todos os ignorantes e maus, todos
os homens dominados pelo fanatismo religioso, philosophico ou politico.
Ha uma cousa muito mais
nobre e elevada do que a politica, uma occupação que não degrada os caracteres nem
corrompe os costumes, em que não é preciso sacrificar a consciência nem praticar
a injustiça, que nos serve de consolação no meio de todas as angustias: é a cultura
litteraria e scientifica. Sem esta cultura tão proveitosa não poderiam realizar-se
nas sociedades transformações benéficas, solidas e duradouras, não teriam os povos
consciência dos seus direitos e dos seus deveres, não conheceriam o seu passado
nem saberiam como proceder para se tornarem mais moralizados e felizes, não poderia
haver politica liberal e sensata.
Quando se trata de prestar
homenagens áquelles grandes vultos que tanta luz irradiaram nos seus escriptos,
todos, sem distincção de partidos, de escolas philosophicas e litterarias, devem
unir-se para mostrar a sua gratidão para com aquelles que tão poderosamente contribuíram
para o progresso intellectual e moral da sua pátria e da humanidade. Ninguém mais
digno das nossas homenagens do que o grande vulto de cujas virtudes e méritos litterarios
e scientiGcos venho hoje fallar-vos. Ninguém mais digno das nossas homenagens do
que o eminente escriptor que se chamava Alexandre
Herculano de Carvalho e Araújo. Ninguém mais digno das nossas homenagens do
que aquelle cidadão illustre que foi a maior gloria portuguesa d'este século e uma
das maiores glorias portuguesas de todos os séculos.
Lisboa, que foi o berço de
Camões e de Vieira, de Diogo de Couto
e de Francisco Manuel de Mello, também
possue a gloria de ser a terra onde nasceu um escriptor em cuja alma se achavam,
por assim dizer, conglobados muitos dos predicados que adornavam os espíritos
d'aquelles grandes homens; um escriptor que chegou a adquirir na litteratura
universal um dos nomes mais illustres; um grande lyrico, cujo sentimento
religioso é profundo como o de Lamartine,
cujo amor da liberdade é vehemente como o de Victor Hugo, cujo patriotismo é ardente como o de Béranger; um romancista que, alem
de rivalizar com Walter Scott na
erudição e no estylo, revela, na pintura das grandes paixões, a energia de Shakspeare e Byron, e nas descripções de batalhas se parece com Homero.
- um historiador eloquente como Tito Livio, vigoroso como Tácito, conciso como Sallustio, elegante como Xenophonte, claro como Taine, consciencioso e erudito como Thierry, imparcial como Maccaulay, philosophico como Guizot e poético como Michelet; um epistolographo sentimental como Rousseau e sóbrio como Voltaire; um polemista cujo estylo não é menos grandioso que o de Lamennais e que na vehemencia da indignação rivaliza com Juvenal.
In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública
realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900,
Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.
Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT