«A prova é o cuidado na educação dos filhos dos irmãos mortos. É ele
que escolhe para mestre da Infanta D. Catarina irmã de Afonso V, e a conselho
do padre João Rodrigues, que se escusou ao convite, o futuro cardeal Jorge da
Costa de que irei falar muito... e do qual dependeu também, em parte, o meu
destino, o do Reino, e o de Manuel que hoje é Rei de Portugal, Manuel I. Álvaro
de Luna tinha pedido auxílio militar ao Regente português contra a opinião dos
próprios fidalgos como o conde de Haro, mas teimara, e Pedro enviara-lhe o jovem
condestável com dois mil soldados de infantaria e mil e seiscentos cavaleiros.
Acabaram por não ser necessários tantos homens de guerra ou a pressão dos
fidalgos castelhanos isso propiciou. Mas a estrela de Álvaro duraria só até
1453, quatro anos depois da morte de Pedro, pois a filha do infante João, D.
Isabel, mulher de têmpera e valor, não permitiu que o aventureiro fosse longe.
Desde o seu casamento, em Outubro de 1446, com João II de Castela até ao
momento em que em Valladolid caiu no cepo a cabeça de Álvaro de Luna, mediaram
sete anos apenas.
D. Isabel, que casara com um homem que nem tivera conhecimento das suas
próprias bodas que o valido tratara e negociara (e a Pedro, sem dúvida e ao seu
esquema futuro de poder na Península conviria por de mais ter uma sobrinha casada
e Rainha em Castela), virou o fraco marido contra o prepotente condestável. Em
Castela, e não só, os poetas cantavam a trágica morte de Álvaro:
Tres delitos le pusieram.
Gran crueza, tirania
et al rey segun sintieron
ocupar la señoria.
A cabeça de cabelos negros do condestável esteve nove dias espetada num
pau no cadafalso, pasto de moscas e vermes. Apesar de tudo, fizera-se justiça e
o carão moreno do Luna, da cor da cinza e rasgado pelas aguçadas arestas
das pedras arremessadas, transformara-se numa máscara terrível. Em 1446 o
Regente, em Portugal, publica as ordenações com o nome do Rei: Afonsinas, código civil, o primeiro, a
exemplo dos de Justiniano e Quintiliano e de outros legisladores da Antiguidade.
Foi a Rui Fernandes que coube o trabalho de compilação e, depois, criava
em Coimbra o Estudo Geral onde se ensinariam as Leis, a Teologia, as
Artes.
A Lei e o ensino dos preceitos legais da sociedade são ou passam a ser as
bases da governação de Pedro, a base de uma nova concepção política e
legislativa da monarquia, mas já, em Janeiro de 1446 o infante Afonso atinge a
maioridade. No entanto, mantém o tio (que praticamente o coage
por necessidades de Estado) no poder até Julho de 1448. Quando
em 1447 D. Isabel partia para Castela para se matrimoniar com o rei João II,
preparam-se dois consórcios que vão ser o grande esteio desta crónica:
- O Infante Fernando, irmão do jovem rei português, casa com D. Brites ou Beatriz, sua prima, filha do Infante João e cumpriam-se as antigas negociações para um outro enlace que tantos engulhos fez ao velho duque de Bragança, o de D. Isabel, filha do Regente, com o primo rei, Afonso.
É consumado a 6 de Junho de 1448. Em 1441, no momento crítico, um dos
mais críticos entre os irmãos, e por intermédio do conde de Ourém, de Henrique
e do arcebispo de Braga, Fernando, as pazes foram feitas, depois do Barcelos
ter tentado impedir a passagem de Pedro e para isso até afundara os barcos do
Douro, o Regente com aquele seu ar de impassível nobreza, os olhos meigos,
propositadamente distraídos, penso que teria sérias dificuldades em manter a
calma se olhasse mesmo o carão feio e o olhar torvo de Afonso que saíra ao pai
na compleição robusta de mistura com o sangue plebeu de Veiros que não o
ajudaria muito, aproveitou para tratar do casamento da filha com o sobrinho
e amansar o meio-irmão.
O arcebispo, com aquele olhar em alvo que a fé tem por princípio conferir
às sumidades eclesiásticas, erguera as mãos e dissera:
Ecce quam bonum et quam jocundum habitare frates in unum!
O Regente Pedro sabia melhor que ninguém que apenas se jogava uma farsa e como, de momento, a força parecia estar-lhe nas mãos, aproveitou-se da ocasião pois sabia que de comum como irmãos tinham apenas um pai, um mesmo pai, que também não merecera, por paga de um pecadilho de juventude, aquele filho que gerara e o seu imenso ódio e despeito apesar de o ter amado muito. Afonso prometia não defender mais os interesses de D. Leonor de Aragão (ela, para ele, nem representava sequer a razão de um programa político mas apenas o meio de satisfazer uma ambição pessoal), aceitava o casamento de D. Isabel com o jovem Rei e prescindia da alegria de ver a sua própria neta no tálamo real português, era uma questão de Rei por Rei, mas exigia que o cunhado, um inimigo de Pedro, o arcebispo que fora exilado, regressasse a Lisboa. Assim foi garantido o acordo. Por pouco tempo. Em Óbidos, em 1441, portanto, efectuaram-se os desposórios reais, no dia da Ascensão. O Rei tinha apenas dez anos. Mais sete anos e consumar-se-ia o matrimónio». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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