«Sá safou-se. Saiu da sala acabrunhado. Sentou-se cá fora a um canto e,
muito bucólico e lírico, soltando azeda lágrima, disse entre dentes:
Dos motes o primor e altos sentidos,
os ditos delicados cortesãos,
que é deles? Quem lhes dá somente ouvidos?
Foi então que Sá teve uma visão. Saído de uma roseira em flor, um corpo
esguio, de boas formas, cabelos encaracolados e claros, um dos olhos vivo e o
outro resguardado por uma pala negra, imaterial como todas as aparições,
flutuava diante de si um outro poeta que sorria e que dizia:
- Todo o mundo é composto de
mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.
Ele há cada cab…, pensou o Sá. Que poeta de pacotilha, este fantasma.
Nem uma áurea mediania o orna, a este espectro... Sá ficou pelo jardim compondo
éclogas:
- Não hás-de mudar o mundo
por mais razões que despendas.
No salão do palácio, Nicolau e El-Rei, já muito bêbedos, cantavam
Pilhérias antigas:
- É filho de mulher,
traz o rosto por diante,
saberá quanto souber
e terá o que tiver,
ou é feio ou é galante.
É mais baixo que gigante
e é maior que pigmeu;
ou é fraco ou é possante,
nam é rei nam é infante,
ou é cristão ou judeu.
Sá sabia que estava ainda anunciado um tal Vicente teatreiro, muito em
voga, que escrevia com erros de palavras e de ideias, coisas que tirava da
infame massa popular, sem saber dominar ou plebeísmo, e que punha em fracos
versos de redondilha, coisas monótonas que quebrava, como falso poeta que era,
com versos de três ou quatro sílabas e mesmo com falhas tremendas do belo rigor
métrico, coisas impossíveis no lirismo palaciano ou no de influência clássica…
Lá dentro, entretanto, El-Rei e Nicolau combinavam a plenos pulmões:
… É filho de mulher,
traz o rosto por diante,
saberá quanto souber
e terá o que tiver,
ou é feio ou é galante.
É mais baixo que gigante
e é maior que pigmeu;
ou é fraco ou é possante,
nam é rei nam é infante,
ou é cristão ou judeu.
E Sá, cá fora, muito tristonho:
- Eles bebem, homem sua,
dói-lhes pouco a dor alheia
querem que nos doa a sua.
Deus, meu puro Deus, Jeová,
Senhor, conduz à Terra Prometida aqueles que libertarás e ressuscita Jacob,
Jacob o das cinzas que ninguém pode enumerar. Deus, meu puro Deus, Jeová,
Senhor, conduz e protege, tu que resides nas mais belas moradas celestes, guia aqueles
que com a tua mão direita plantastes...
Era o Pessakh, a Páscoa judaica, celebrava-se o Seder, a cerimónia pascal
judaica, e já se fizera em segredo aspirar a mirra, e tinha-se celebrado o
vinho, e fizera-se consumir o pãozinho ázimo, as ervas amargas, o doce mel, o ovo
cozido em cinzas, o aipo, o harosset que é o bolinho misturado
de vários frutos a simbolizar a argamassa com que os judeus construíram as suas
casas no exílio do Egipto nos velhos tempos, o harosset tornado próprio
da cerimónia. - Tudo isto em muito segredo, pois era mais que proibição.
Estavam agora à conversa, e faziam-no em voz segredada, tal era já o
hábito de escutas e perseguições... Seria pior agora do que aquando da Queda do
Templo? - Que podemos dizer nós, judeus, de El-Rei, se nem para os seus
cristãos é de gratidão? Zacuto contava e um punhado de hebreus escutava atentamente.
- Está-lhe na raça, no sangue. Desdenhou de Pedro, o navegador, e do grande
Vasco, e de Magalhães, o coxo, que até um mar novo descobriu e que, tal como
esse Colombo zarpou daqui para fora a servir os Espanhóis, ou de Tristão da Cunha
que chegou a cegar pela dedicação em que andava, ou de Francisco de Almeida, ou
de Afonso, o Albuquerque que andou tanto e tão bem pelo Índico... Ignorou
Pacheco Pereira e os Cortes Reais. Sim, que a esse Pacheco mandou-o trazer ao
reino em ferros e sem lhos tirarem dos pés, esteve muito tempo na cadeia, até
que, por se saber serem falsas parte das culpas que lhe punham, o soltaram tão
pobre como o que era quando foi para a Mina. E aos Cortes Reais desdenhou os
serviços e ignorou-os, e sendo que eles lhe descobriram a Terra dos Bacalhaus… -
Não é por aí que vive um povo raro? – quis um deles saber». In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT