« - Raro e muito bárbaro e agreste, quase ao modo dos da mui recente
descoberta Terra de Vera Cruz tal como os que já dela vieram agora a descrevem,
senão que estes são alvos e tão curtidos de frios que a alvura se lhes perde
com a idade, e ficam como baços. São de corpo meãos, muito ligeiros, e grandes
frecheiros, servem-se paus tostados em lugar de azagaias, como que ferem de
arremesso como se foram de aço fino; vestem-se de peles de alimárias, de que na
terra há muitas, vivem em cavernas de rochas e choupanas, não têm 1ei, crêem
muito em agoiros, guardam matrimónio e são muito ciosos de suas mulheres, nas
quais coisas se parecem com os Lapões, que também vivem debaixo do Norte, de
setenta a oitenta e cinco graus, sujeitos aos reis da Noruega e da Suécia, aos
quais pagam tributo, ficando sempre em sua gentilidade, por falta de
doutrinas...
- Mas o que sucedeu a esses
Cortes Reais? E porque não se interessou o rei? - O rei só se interessa
de si e suas fortunas, e nem gosta de bacalhaus, carne de peixe sem graça...
- E dos Cortes Reais deixou de haver rasto. Primeiro desapareceu um, depois o irmão partiu por ele e desaparecido ficou, e a pimenta ê que vale ouro, não são os bacalhaus, o rei nem se ralou mais... Quem se ralaria com uma terra que só dá peixe de mau sabor, e com dois tontos embarcadiços que demandam à toa, pensou El-Rei e deu de ombros...
- Isto é reino enfermo de males!
- O mal maior inda será El-Rei. - Mal enorme é outro: é de haver mania de inculcar
no povo que todos os males vêm de nós, cristãos-novos ou judeus. Isso é que é
mal que nos perderá... Ficaram todos em silêncio a pensar na verdade e nas consequências
desta afirmação.
O homem mergulhava a pena de pato no tinteiro e depois usava-a até à
última gota aproveitada numa letrinha exacta e de ideias firmes. O homem, como
todos os que escrevem, por mais que inventasse fazia-o sempre em abono da
verdade. Talvez por isso a sua mão fosse tão segura, a letra tão direita, as
ideias tão directas. O homem, por isso, não era querido de El-Rei. Mas a que
poder poderá estar rendido quem escreve? A que poder poderá agradar quem tem apenas
o poder de modificar as mentiras deste Mundo?
Fortes são os fracos que se respeitam a si próprios e têm, sobretudo,
consciência das suas fraquezas... O homem escrevia. E fazia-o, sem piedade, sem
emoções maiores do que as emoções que se extraem das ideias, fazia-o sobre a
figura de El-Rei. Fazia-o com exactidão. Que El-Rei era perito em torpezas e
que era cruel. Que tinha os braços compridos de símio e os olhos leitosos
doentios. Que tinha uma alma de perdido que o levara a ir-se aos judeus para os
pilhar e humilhar e aos seus servidores mais destacados a exilá-los, desprezá-los,
a ignorá-los e a traí-los.
O homem, sim, o homem era um incómodo. O homem merecia, segundo El-Rei,
arder numa fogueira depois de ter sido esticado numa roda de suplício e largos
pedaços da pele terem-lhe sido arrancados e salgados sobre chaga viva... Um
olho vazado a sangue-frio, paus em chama espetados nas unhas dos pés, ferros em
brasa a desenharem arabescos nos costados... Uma morte lenta e muito sofrida,
era o que o homem merecia, de acordo com a opinião de El-Rei. O homem escrevia.
O homem contava com crueza impiedosa a imagem real de um rei nem impoluto, nem dissoluto,
apenas bruto e espúrio no pensar, no pouco sentir, e no muito errado agir.
Sortudo, porém, e por tal impune. Todo-poderoso e sem conselho. Autónomo no
errar, nisso sendo perito, um venturoso...» In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT