Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«Por
volta de 1589, um grupo de estudantes de Teologia da Universidade de Évora
preencheu tempos de ócio convertendo espirituosamente ao de-vinho o Canto I d’Os Lusíadas. Também nessa
época, Tristão Gomes Castro compôs na sua Argonáutica da Cavalaria
uma aventura paródica em que o herói, de promissor nome Leomundo, percebe com
susto e náusea que é üa fegura de mulher, a mais horrible feia
que em toda a vida tinha visto, aquela cujo encantamento deve quebrar
com um beijo. Não custa descobrir o modelo de tamanha fealdade e da reacção que
suscita. O episódio do Adamastor pairava na imaginaçáo de Gomes Castro
quando este madeirense, decidido a engendrar admiráveis surpresas, retomou e
amplificou, na efígie da princesa adormecida, traços do monstro horrendo descrito
por Camões, e na aflição do paladino o medo do Gama em face desse estranhíssimo colosso, começaram
logo as carnes [de Leomundo] de se lhe arrepiar, e os cabelos da cabeça a se
lhe rebatarem ao ver tão:
- grandíssima estatura, a cor do rosto terrena e pálida, coberto de uas pintas muito negras e vermelhas que lhe faziam o rosto medonhosíssimo; os olhos mui piquenos e encovados, a boca negra, os dentes amarelos e lançados dela mais de quatro dedos, a barba escálida, os cabelos negros e muito retrocidos.
Por
seu turno, sempre em idêntico período, Fernão Álvares do Oriente, pronto a apregoar,
na Lusitânia
Transformada, genuína devoção por Camões, elaborou aí como que um
epílogo edificante do episódio da Ilha de Vénus. Sinal da mudança e do seu
sentido morigerador, a ilha, cristianizada, volve-se da Rainha santa Helena, e as
ninfas que nela deambulam já não praticam as artes que Citereia pagã ensina:
penitentes e lacrimosas, carregam remorso pela pureza […] mal perdida e
pelos desconcertos de amor passados com os primeiros argonautas do largo
oceano. Nessa esteira seguiria Vasco Mousinho, que no Affonso
Africano (1611) recriou criticamente o mesmo episódio d’Os
Lusíadas, condenando com ênfase, através de hábeis efeitos dialógicos,
a extraordinária liberdade pintada na ilha angélica.
Vasco
Mousinho de Quevedo, permeável à influência da Gerusalemme Liberata,
de Torquato Tasso, imita e refuta, emula e repreende: inverte ou altera a
caracterização de personagens e situações; torna prazer sinónimo de pecado;
e se evoca, com nitidez, palavras d’Os Lusíadas, recrimina a sua lição.
Que no lema hedonista propalado por uma sereia caiba um verso do estupendo
Canto IX
Gozemos
o melhor da fermosura
que
deu para se dar a Natureza,
Nada
mais seria preciso para indicar a voz da tentação, mas o escúpulo do autor
leva-o a acrescentar ainda, severas e peremptórias, óbvias advertências, e
entre elas uma que, além de servir de remate moral à peripécia, compendia
doutrina poética afìnada pelos ditames de Trento:
Nem
de exemplos useis vituperados
em
Lei de qualquer livre entendimento,
só
para doce fábula inventados,
que
a sensuais enleve o pensamento.
E
se aqueles por fortes são julgados,
não
teveram porém conhecimento,
que
era de um forte a mais famosa empresa,
executar
consigo a fortaleza.
Contrastantes,
apropriaçóes iconoclastas ou reinvenções animadas de intuitos correctores,
estes exemplos sugerem uma vária presença de Camões e evidenciam quão díspares seriam os caminhos da recepção da
sua obra (maxime d’Os Lusíadas) no quadro da Monarquia Dual. Por outra via,
empenhado em garantir a memória das cousas da pátria (Tão alheios vivemos nós de nós mesmos...)
e em impugnar uma opção historiográfica que reputou escandalosa, Gaspar
Estaço não hesitou em recorrer ao poema como testemunha salvítìca: acusando
Duarte Nunes de Leão de elidir, na
sua Crónica
de D. Afonso Henriques, a façanha
de Egas Moniz, Estaço bradava contra um eclipse capaz de vingar:
- se não fora o poeta Luís de Camões, que com seu bom júzo e curiosa eleição recolheu de nossas histórias as pedras preciosas de mais estima, pera com elas honrar a obra dos seus Lusíadas.
O
que se pretende aqui não é ilustrar todo esse vasto fenómeno, nem sequer dar conta
do amplo espectro de questões que despertou ou implicou. Procurar-se-á, sim,
restringir o escopo do trabalho, fazendo sobressair processos de valorização
simbólica da epopeia como o que Gaspar Estaço adoptou; processos que,
indissociáveis de uma atitude política, ora de resistência ou reserva à ordem
instaurada, ora de sintonia com o regime filipino, envolvem, para lá de
imediatas iniciativas individuais, malhas de interesses não raro apoiados em
fortes tradições». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século
XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.
Cortesia
da FCGulbenkian/JDACT