terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Alfacinhas. Alfredo Mesquita. «O dono da casa, quando à tarde voltava do Ministério, ia logo direito à cozinha para saber o que se tinna feito, abria o forno do fogão à procura das galinhas que alouravam e reluziam do pingo das enxúndias, admirava as postas de sável, ia meter o nariz na frigideira onde espirravam as frituras, cheirava…»


Cortesia de wikipedia

«Ir no ónibus até Benfica. passar lá um dia, e voltar, era muitas vezes um romance. Partia-se do Pelourinho, de manhã cedo, pela fresca. Ainda a essa hora não havia lojas abertos, nem sequer se sonhava o que pudesse vir a ser a garotada dos jornais de agora, a correr e a grilar o Popular! e o Illustrado! por todas as ruas e travessas da Baixa, logo ao romper d'alva. Era preciso chegar sempre primeiro, para se arranjar lugar. Tomava-se bilhete com muito antecedência. Faziam-se madrugadas. Deitava-se a gente mais cedo na véspera, para poder saltar da cama sem grande custo às cinco horas do manhã, ou cinco e um quarto. Se o passeio estava destinado para o domingo, por exemplo, todo o dia de sábado se passava a preparar o farnel.
Matavam-se duas galinhas, e assavam-se. Espreitava-se a peixeira que trouxesse maior sável e mais fresco, cortavam-se-lhe as postas quanto mais delgadas melhor, e frigiam-se muito bem, até ficarem quase torradas as suas muitas espinhas, tão boas de trincar. Faziam-se duas dúzias de frituras de bacalhau, deitado de molho já na sexta-feira, misturando-se-lhe muita cebola e muita salsa picadas o mais possível, um nadinha de noz moscada, pimenta mais que de costume, e duas gemas de ovos também a mais.
O dono da casa, quando à tarde voltava do Ministério, ia logo direito à cozinha para saber o que se tinna feito, abria o forno do fogão à procura das galinhas que alouravam e reluziam do pingo das enxúndias, admirava as postas de sável, ia meter o nariz na frigideira onde espirravam as frituras, cheirava, fungava, achava tudo delicioso, antegozando a boa petisqueira. Suspensa de dois dedos por uma laçada de cordel, trazia uma surpresa também destinada ao passeio. Era um pacote feito com papel cor-de-rosa, parecendo proveniente de loja de confeiteiro. O que seria, o que não seria, mas só no dia seguinte se saberia o que era. E para que alguém mais curioso se não lembrasse de desfazer o embrulho, sorrateiramente ia metê-lo num dos esconderijos da mesinha de cabeceira!
O esperar por a festa não era o melhor dela, mas já era muito do seu gáudio. Por volta das nove horas, o mais tardar, já tudo estava em vale-de-lençóis, marido e mulher costas com costas, e cada uma das filhas, e o menino, e a criada, cada qual na sua cama feita de lavado por ser sábado, tudo com o nariz voltado para a parede, e os olhos muito apertados a chamar o sono mais depressa…
Sono que vinha, passava e chegava no fim num abrir e fechar de olhos, para bem dizer. Sono sem sonho, leve, de sobressalto na realidade, a inquieta realidade de uma grande ventura que vem perto, de um vivíssimo prazer que é certo e que não tarda. Então se acordava, como se havia adormecido, com a alma aos saltos. Tudo era vivacidade, risota e chilreada.
Deitando a cabeça de fora da porta do seu quarto, o menino Pedro era o primeiro a chamar pela Demetilia, pedindo água no jarro. E a Demetilia, quando aparecia no corredor, saindo da cozinha, onde estava a pentear-se, e a mirar-se só com um olho no espelhinho redondo, pendurado no caixilho da vidraça corrida para cima, vinha já com a sua cuia feita toda crivada do ganchos, a sua saia branca muito engomada e do imensa roda já vestida, a sua bota nova de rangedeira já calçada…
Diz-se que ninguém esfrega um olho mais depressa que o Diabo. Pois, mais depressa que o Diabo esfrega um olho, estavam todos prontos, e todos cá em baixo, na rua, de nariz no ar, a sorver as frescuras da manhã, a caminho do sítio de onde partia o ónibus». In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.

Cortesia de University of Toronto/JDACT