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Ficareis offerecida
á Fama, que sempre vela,
frauta, de mi tão
querida,
porque, mudando-se a
vida
se mudam os gostos della.
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Mas - deixar nesta
espessura
o canto da mocidade -
Não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo e espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mi poderão tanto
que, posto que deixo o canto,
a causa delle deixasse.
Mas em tristezas e nojos,
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tendré presente á los ojos
por quien muero tan contento.
Orgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que alli estava,
que para tropheu ficava
de quem me tinha vencido.
Porque não canta, porém,
o desolado poeta, ao menos para minorar as suas mágoas?
… Lembranças da affeição,
que alli captivo me tinha,
me perguntaram então
- Que era da musica minha,
que eu cantava em Sião?
Que foi daquelle cantar,
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?
Eis como ele responde:
Eu que estas cousas senti
na alma, de maguas tão cheia,
- como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra
alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o
peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos engeito.
Que não parece razão,
nem seria cousa idonia,
por abrandar a paixão
que cantasse em Babylonia
as cantigas de Sião.
Que, quando a muita
graveza
de saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes morra de tristeza,
que, por abrandá-la, cante.
Que, se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento;
que morrer de puro triste
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo e passei já,
nem menos o escreverei,
porque a penna cansará
e eu não descansarei.
Que se vida tão pequena
se accrescenta em terra estranha,
e se Amor assim o
ordena,
razão é que canse a penna
de escrever pena
tamanha.
Porém se, para assentar
o que sente o coração,
a penna já me cansar,
não canse para voar
a memoria em Sião.
Em seguida, num belo
rapto, exclama o poeta, referindo-se a Sião, à terra da pátria, que no fundo da
sua alma identifica com a bem- amada.
NOTA: Sião, para o poeta,
era o bem passado na pátria, consubstanciado no amor da Infanta. Leia-se também
a estancia 4ª em que ele, tendo-se imaginado em sonhos sobre os rios de Babilonia,
continua a lastimar-se, depois de acordado:
Alli, despois de acordado
(co rosto banhado em agua)
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é magua.
Apesar disso, como esse bem
lhe custava a esquecer! Como ele, na primeira parte das presentes redondilhas,
declara que há de ter sempre presente aos olhos aquela por quem morreria
contente!
Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
da alma me fores tirada,
minha penna seja dada
a perpetuo esquecimento!
A pena deste desterro,
que eu mais desejo
esculpida
em pedra ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro!
E se eu cantar quiser,
em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito!
A minha lingua se apegue
as fauces, pois te perdi.
se, emquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esqueça de ti!
Passemos agora à segunda
parte do formoso poemeto, na qual Camões
renuncia ao amor profano, para se elevar, em místicos arroubos, à contemplação
da beleza eterna» In
José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
continua
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