«Uma história por contar No dia 2 de Março abre ao
público a exposição 360º Ciência Descoberta que quer mostrar uma página muito mal
conhecida da história da ciência, na qual Portugueses e Espanhóis surgem como
precursores da ciência moderna do século XVII. O curador, Henrique Leitão, diz que os fenómenos que a exposição
pretende mostrar prendem-se precisamente com o modo surpreendente como
Portugueses e Espanhóis lidaram com a novidade e a incorporaram. Depois
da exposição As Idades do Mar, dedicada à pintura europeia e visitada por
mais de 50 mil pessoas, a sala de exposições da Sede vai acolher uma mostra
sobre a ciência no tempo dos Descobrimentos,
onde o mar continua a estar presente já não como fonte de inspiração de artistas,
mas nas rotas dos navegadores portugueses e espanhóis dos séculos XV e XVI ao
encontro do Novo Mundo.
Intitulada 360º Ciência Descoberta, esta exposição pretende fazer luz
sobre uma página muito mal conhecida da história da ciência, na qual Portugueses
e Espanhóis surgem como precursores da ciência moderna do século XVII. Segundo
o curador, Henrique Leitão,
investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da
Tecnologia, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, nunca
descobrimos o tom certo para contar esta história, onde não há génios como Copérnico,
Galileu ou Kepler, mas há um modo fascinante de acumular e gerir o
conhecimento, que se tornou caso único na Europa. Nesta entrevista, Henrique Leitão adianta o que se
poderá ver na exposição que abre portas a 2 de Março, na Galeria de Exposições
Temporárias da Fundação. Qual é o
principal foco da exposição? Queria começar por sublinhar que não se trata
de mais uma exposição sobre os Descobrimentos portugueses, mas sim de uma
exposição que pretende revelar os contributos científicos dos Portugueses e
Espanhóis nos séculos XV e XVI, durante o período das grandes navegações
oceânicas, mostrando o impacto que tiveram no eclodir da ciência moderna. É um
convite a um novo olhar sobre a nossa História, revelando aspectos
desconhecidos do nosso passado científico e lançando luz sobre uma série de
fenómenos notáveis associados às viagens empreendidas pelos povos ibéricos e
que estiveram na base da modernidade científica.
[…]
De que modo esse conhecimento era sistematizado? De
um modo verdadeiramente notável. Portugal e Espanha criaram aquelas que foram
possivelmente as primeiras instituições de gestão do saber na Europa:
- a Casa de la Contratación, em Espanha, e os Armazéns da Índia, em Portugal.
A primeira obrigação destas instituições prendia‑se
com a logística administrativa e militar das viagens marítimas, mas começaram
também a acolher e a organizar as novas informações que iam chegando. Por
exemplo, as muitas novas plantas recolhidas eram observadas e as suas
propriedades curativas, por exemplo, – eram analisadas e sujeitas a validação
por médicos nacionais. Estas instituições passaram então a responsabilizar-se
pela gestão deste saber e até pela atribuição de preços aos produtos que seriam
postos à venda. Um dos campos em que esta dinâmica se fez sentir mais foi, como
se calcula, a Cartografia. Como se
fazia a actualização dos mapas? Existia um mapa-padrão que era o modelo de
todos os outros e que ia incorporando os resultados das observações que se iam
fazendo no decorrer das viagens. Este mapa estava permanentemente a ser actualizado
pelos cartógrafos dessas instituições ibéricas. A exposição apresenta, aliás,
uma versão animada da transformação do mundo, através de uma mapa que vai
lentamente mudando de forma, adquirindo os contornos testemunhados pelos viajantes
ibéricos, até atingir a forma que hoje conhecemos.
E como se geria a restante informação que ia
chegando? Houve, nos dois países, um esforço de sistematização do conhecimento
acumulado, gerido pela Coroa, que tratou de implementar uma estrutura
normativa, através de decretos e regulamentos. Em cada viagem, os pilotos eram
instruídos sobre um conjunto muito preciso de observações que deviam levar a
cabo e que incluía informações sobre latitude, declinação magnética, correntes
marítimas, fauna e flora, etc. Essa informação era depois entregue ao cosmógrafo-mor,
que garantia a organização deste novo saber. Um saber que era transmitido pelos
marinheiros…
[…]
Os Portugueses e os Espanhóis conseguiram habilitar
muitas centenas de homens de um nível baixo da sociedade para este trabalho,
naquilo que foi um fenómeno nunca antes visto de transferência de conhecimentos
técnicos para os estratos pouco instruídos da população. E como era dada essa
formação? Na altura existiam poucos astrónomos ou matemáticos competentes e,
portanto, eram escassas as pessoas capazes de fazer as medições e os cálculos
matemáticos. De repente, foi preciso formar uma imensa quantidade de pessoas
com um conjunto mínimo de competências técnicas e científicas. Isto obrigou à
criação de espaços de formação fora das universidades, levando ao surgimento,
pela primeira vez na Europa, de escolas técnico-científicas e ao aparecimento
de profissionais intermédios entre o mundo universitário e o da artesania.
Outra consequência foi o grande incremento do vernáculo como língua técnica.
Tudo isto são fenómenos da maior importância para o surgimento da ciência
moderna. Que repercussão teve tudo isto na Europa? A Europa estava, na altura,
de olhos postos na Península Ibérica; muitos observadores, para não lhes chamar
espiões,
deslocavam-se aos principais centros para recolher informação, que depois
atravessava fronteiras e circulava com muita rapidez. No século XVII, as
grandes potências marítimas olhavam para Portugal e Espanha como o exemplo a
seguir a vários níveis. Não eram só os mapas que eram copiados, também as técnicas
e o tipo de ensino técnico que se ministrava, a estrutura das instituições. Há
muitos textos que o comprovam. Por que
razão esta história não é contada? Sobretudo por uma razão simples: até há
cerca de 50 anos, a história da ciência era centrada nos grandes vultos: Copérnico,
Galileu, Kepler, Newton. Pulávamos de génio em génio e como nenhum deles
era ibérico, Portugal e Espanha ficavam literalmente fora. Quando os
historiadores de ciência começaram a duvidar deste tipo de narrativa heróica e
começaram a alargar o horizonte de análise, incorporando outros actores, as
práticas, as instituições, os objectos, etc., o contributo ibérico impôs-se de
forma inequívoca. Vários especialistas começaram a reconhecer a acção
precursora dos Portugueses e dos Espanhóis, devolvendo-lhes o protagonismo
esquecido pela narrativa histórica.
Que peças
serão mostradas? Serão mostradas algumas peças inéditas que nunca foram
vistas em Portugal e que constituem marcos, pelo seu carácter científico, técnico ou
simbólico, ilustrando com eloquência este período de ouro do empreendedorismo
ibérico. Entre elas, contam-se manuscritos, mapas, instrumentos, livros e produtos
naturais. Daria talvez destaque a alguns dos mapas magníficos que serão
expostos. De Itália, virá o único manuscrito que existe de Pedro Nunes, o grande
matemático português, e que nunca foi exposto no nosso país. Em exposição
estará também o primeiro globo que existiu na China, do princípio do século
XVII, e que tem a particularidade de mostrar pela primeira vez naquele
continente, a forma esférica da Terra. E que figuras serão destacadas? Esta
exposição não procura heróis. Claro que fará referência a nomes conhecidos como
Pedro
Nunes ou Garcia de Orta, mas centra-se sobretudo no esforço comum que
envolveu pilotos, cosmógrafos, matemáticos, naturalistas e muitos outros,
esforço ignorado por uma historiografia internacional focada nos génios da ciência,
e por uma historiografia nacional dada a extremos, oscilando entre
triunfalismos e derrotismos. Uma parede repleta de nomes homenageia cerca de
três centenas de pessoas que deram o seu contributo, e que são apenas uma
pequena parte de uma multidão que viveu um extraordinário período da História,
heróis anónimos de uma página que a História da Ciência saltou e a quem esta
exposição pretende fazer justiça. Deixem-nos agora contar a nossa História».
In
FCG, Henrique Leitão, Newsletter Gulbenkian Fevereiro de 2013.
Cortesia de FCG/JDACT