Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«Dos dois séculos considerados sobreviveram algumas dezenas de cartas
de viárias oficinas de cartógrafos, e muitas delas, a dos Reinel e as do Homem,
entre outras, provenientes de verdadeiras escolas familiares, como era entÍio
ainda corrente entre os oficiais de uma determinada arte, no sentido grego da
palavra. Na sua quase totalidade apresentam-se essas ciìrüas ricamente
iluminadas, motivos muito variados: homens, animais, plantas, castelos, um ou
outro templo, rosas-dos-ventos, navios.
As mais simples serão talvez as do atlas anexo ao Livro de Marinharia de João de Lisboa, anónimo e não datado,
mas datável de meados do século; mas até essas têm os topónimos requintadamente
escritos a vermelho e a castanho-escuro, ostentam grande número de bandeiras,
representam convencionalmente algumas cidades em esbocos de bom recorte e têm
todo o litoral pintado a azul. É claro que não eram cartas com estes
acabamentos luxuosos que passavam às mãos dos pilotos; elas terão sido antes
plepgadas para satisfazer o pedido de algum erudito endinheirado ou de algum nobre
curioro, é caso do planisfério de Cantino e por isso o cartógrafo se
esmerou nesses pormenores de belo efeito mas absolutamente desnecessários para
a navegação. As cartas destinadas à pilotagem decerto se iam gastar
quase sempre pelo uso que os pilotos delas faziam, sendo por isso presumível
que muito poucas chegassem aos nossos dias; talvez a única nessas
circunstâncias seja um fragmento de um planisfério de Luís Teixeira, c.
1585, que está no Museu de Marinha de
Lisboa.
No entanto, do ponto de vista que nos interessa tomar ao redigir estas
linhas, são exactamente as cartas sobreviventes as que mais nos interessam. O
cartógrafo transpunha para o desenho por via de regra as informações recolhidas
de pilotos e navegadores e esses dados são por isso de grande significado para
se ter uma ideia de como alguns homens do mar desse tempo, e os viajantes
embarcados em naus e caravelas por aqueles marcadas viam os novos
mundos que se lhes deparavam, sabiam e pensavam a vida ou os costumes
dos novos povos com que estabeleciam contactos, localizavam, e ès-vezes mal ou
muito defeituosamente, cidades que por tradição se tinham tornado importantes,
etc.
Nos relatos de viagens de vários tipos os autores têm uma tendência a
compaginar o que vêem com o conhecido, ou, seja, com o europeu e, sobretudo,
com o português. É assim que Álvaro Velho, suposto autor da Relação
(e não diário) da primeira viagem de Vasco
da Gama, compara Melinde a Alcochete; que Tomé Pires diz, de um povo Oriental, que usava escrita de
números como a nossa, quando, afinal, nós é que a usávamos como
eles!, e assim por diante. Quer dizer: nesses escritos procurava-se
descortinar a semelhança do novamente visto com o visto ou conhecido. Na
cartogfafia, os autores dos desenhos agem preferentemente ao contrário: é o novo,
o imprevisto e até o insólito que de preferência assinalam. Isto é, enquanto
nos relatos escritos os autores estão atentos às convergências, e por
vezes apenas superficialmente apreendidas, como é o caso de a trindade do
hinduísmõ ser tomada pela cristã, no caso da cartografia os autores de mapas
iluminados prestam sobretudo atenção a confrontos ou a diferenças, embora às
vezes com fantasia». In Luís de Albuquerque, Breves considerações
sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na
época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991,
ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT