«… silêncio que seria
errado interpretar como oclusão momentânea do lirismo nacional: quando muito, a
falta de textos, que não deve confundir-se com a sua inexistência, pois apenas
significa desconhecermo-los actualmente, poderá imputar-se a uma crise de
crescimento de uma poesia que começava a emancipar-se dos esquemas paralelísticos
da tradição galega e demandava, sob o influxo do espírito renascente, novas
formas e novos estilos. Quem se atreveria a concluir, dessa ausência de textos,
que a voz da poesia portuguesa tivesse emudecido durante um século, que durante um século houvesse estancado
o veio do lirismo nacional? Eis porque se nos afigura revestir-se,
neste sector como aliás de um modo geral em todos os capítulos da História
da Literatura, de uma premente acuidade a severa advertência de Leo
Spitzer aos teorizadores da cultura para que não construam as suas falazes
arquitecturas sobre a área movediça do estado momentâneo e transitório da sua
informação histórica, em vez de o fazerem sobre factos permanentes da cultura.
É, precisamente, a
consideração desses factos permanentes
da cultura que nos leva a rejeitar a tese absurda de que, antes de Gil Vicente, o teatro fosse desconhecido
em Portugal. Não se compreenderia com efeito, que as manifestações dramáticas
características da Idade Média, tanto as de natureza religiosa como as profanas
comuns a toda a Europa, como pode dizer-se que eram, não houvessem chegado ao
extremo ocidental da Península Ibérica. Como aceitar, por exemplo, que, não
obstante a interdependência das literaturas lusitana e espanhola, de que é
expressivo testemunho o lirismo galaico-português dos nossos primeiros
Cancioneiros, os ecos do teatro medieval castelhano não tivessem repercutido
em Portugal? Como explicar que as ordens religiosas, de cujo seio os mistérios
e as moralidades
emergiram, separando-se gradualmente do ritual litúrgico, ao instalar-se em
Portugal não trouxessem consigo esses
fermentos de que germinou o teatro moderno? Como admitir que jograis e
trovadores, nas suas peregrinações por terras lusitanas, não incluíssem no seu
repertório a narração, dialogada e mimada, de episódios burlescos ou inspirados
nas novelas de cavalaria, nos evangelhos e nos livros hagiográficos, que tão
grande popularidade alcançaram noutros países e que embrionariamente eram já teatro? Permeável a diversas
influências culturais, que nomeadamente através do caminho francês
conducente a Santiago de Compostela
e dos trovadores oriundos da Provença lhe chegaram, como poderia a sociedade
portuguesa manter-se refractária ao irresistível e impetuoso surto dramático medieval? E, alargando o âmbito da
questão a um plano mais genérico: acaso será concebível que o instinto
mimético, a natural propensão lúdica, a espontânea tendência imitativa, que se
encontram na origem do teatro, durante os três séculos e meio que aproximadamente
decorreram desde a fundação da nacionalidade à representação do primeiro auto vicentino,
se não tivessem manifestado em
Portugal?
A carência de textos
escritos, e o carácter oral de todas as literaturas nos seus primórdios pode
muito bem explicá-la, com especial adequação no que ao teatro se refere, está
longe de constituir um óbice intransponível a que haja um teatro pré-vicentino.
Aliás, esses textos existem, ainda que em número reduzido; e, sobretudo, a par
deles possuímos documentos que nos dão indirectas, mas preciosas e irrecusáveis
notícias de um teatro anterior a Gil Vicente, em cuja obra, transfigurados
pelo seu génio poético, subsistem os principais elementos desse teatro.
De resto, e mesmo descontada a influência do drama
pastoril castelhano de um Juan del Encina, a que também Garcia
de Resende não deixava de referir-se nas suas trovas citadas,
dificilmente se compreenderia que Gil Vicente, ou como ele qualquer
outro autor isolado, pudesse fazer nascer ex nihilo um teatro. O perfeito acabamento
estético da obra vicentina, a multiplicidade de estruturas dramáticas que nela
se combinam e em que se organiza, pressupõem necessariamente uma gestação
anterior cuja inexistência o génio do seu autor, por maior que fosse, o que
aliás não está em causa, era só por si insuficiente para justificar. Aceita-se
que Gil
Vicente haja dado uma forma e um conteúdo, um sentido e um estilo
literários, a elementos rudimentares e até então dispersos; mas não se aceita,
por cientificamente inverosímil, que 1502,
ano em que surge o Monólogo do
Vaqueiro seja o ano zero do teatro português. Por outras
palavras: a obra dramática de Gil Vicente poderá, sim, representar
aquele momento de uma evolução dialéctica em que a quantidade engendra uma nova
qualidade». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro
Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto
Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.
continua
Cortesia do Instituto Camões/JDACT