Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante
Reconhecimentos
que contam
Em Janeiro de 1804, Goethe escrevia a Schiller
mais ou menos isto:
- (…) dou-lhe notícia de duas obras de arte que me chegaram (…) A segunda é uma peça de Calderón. Fernando, príncipe de Portugal, morre na escravidão em Fez, porque não quer que se entregue Ceuta, que é exigida como resgate para a sua libertação. Tal como nas peças anteriores, sobretudo à primeira leitura, é-se interrompido no gozo do pormenor por variadas causas; mas, quando se chega ao fim, e a ideia se eleva aos olhos do espírito como uma fénix das chamas, julga-se nunca se ter lido nada de tão primoroso. Merece certamente ser colocada ao nível da Meditação aos Pés da Cruz; podemos até dar-lhe um lugar cimeiro, talvez porque a lemos mais recentemente e porque o assunto, bem como o seu tratamento, é bem digno de ser amado, no mais elevado sentido. Apetece-me dizer que, se a poesia desaparecesse por completo da face da terra, podíamos reconstituí-la a partir desta peça.
Goethe lera por
certo a primeira edição, 1803, da
tradução alemã de Schlegel, mas será talvez o aparecimento da segunda, em 1809, que o estimula à apresentação da
peça no teatro do Ducado de Weimar, ponto de partida de sucessivas vagas
de interesse pelo texto calderoniano na Alemanha dos séculos XIX e XX. Schlegel,
Schiller e Goethe, por muito motivados que estivessem pelo ideário
romântico que tão apaixonadamente apadrinharam, não eram insensíveis a
destrinças:
- entre o bom e o mau, o suficiente e o medíocre, o impacto do passageiro e o impacto do que viera para ficar, aceitavam escolher e recomendar.
El Príncipe Constante, obra de um espanhol de 28 anos
chamado Pedro Calderón de la Barca, que viveu e morreu no século XVII,
estava de facto fadado para ser guardado pela história do teatro literário,
para resistir ao abalo das modas e das mudanças, ao impiedoso cerco dos espaços
e das admirações de ocasião. No século XIX ainda, apreciaram-no a França e a
Inglaterra, traduções francesas de 1827-28
e 1841-44 e versão inglesa de 1853, depois da Itália, tradução de 1824, a Polónia, tradução/adaptação de 1844 e a Hungria, tradução de1870; dobrado já o século XX, outras
versões se impuseram: a russa, 1902 e
1961, a checa (?), a sueca, 1904,
a holandesa, 1944, e outras mais em
países em que não seriam as primeiras.
Cabe, então, perguntar
se, com um protagonista português, um Infante
Santo, mesmo que não canonizado, que nos habituámos venerar por uma virtuosa
perseverança, um príncipe que, desde os nossos tenros anos, nos desenharam como
modelo. Ainda será assim? Alguma tradução portuguesa entre nós apareceu, a
atestar, pelo menos, um agradecimento, ao autor e à sua criação, ou se algum
espectáculo, de ontem ou de hoje, recompôs nos nossos palcos essas cenas
longínquas de heroísmo e dedicação, trazidas em versos que tantos outros
souberam apreciar.
A pergunta tem toda a
razão de ser, a resposta irá sendo dada aos poucos, à medida que avançarmos num
trabalho que não pretende ser mais um
título bibliográfico a prestar contas dos invejáveis dotes
poético-dramáticos por tantos já avaliados, embora sempre os acrescentos sejam
bem vindos, antes foi pensado como uma espécie de reapreciação do encadeamento
de textos peninsulares em torno da figura do Infante Fernando com o
olhar voltado para Calderón, a partir de algumas premissas que têm a ver
com interpretações que, sendo históricas ou prioritariamente literárias, também
com a hagiografia conservam o seu parentesco.
Antes, porém, de pela
escolhida senda nos adentrarmos, uma última informação sobre o talvez mais
célebre espectáculo moderno centrado na peça calderoniana, o que dirigiu Jerzy
Grotowski no Théâtre de Nations, em França, no ano de 1966, dividindo assistência e críticos entre fanáticos apoiantes e severos
juízes, com uma proposta de quase sádica insistência na crueldade humana de que
o corpo do principal actor ia dando provas, nos limites de uma capacidade de
resistência que quase só na agonia de Cristo tinha um paralelo à altura». In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a
El Príncipe Constante, Via Spiritus 10,
2003.
Cortesia de Via
Spiritus/JDACT