«A Rainha e Fernando Peres, com parentes e amigos
da Galiza, ajuntara homens de armas para reduzir o moço Infante, que já tinha
de sua mão castelos e terras do Condado. A meus olhos se figura essa magnífica
arrancada de combatentes, que vão fundar a independência portuguesa. Vejo o
Infante, mocetão hercúleo de dezassete anos, face sanguínea em que desponta uma
penugem doirada, saltar para a sela mourisca de arções prateados e peitoral de
pingentes, que cobre seu corcel de batalha. Imitam-no os cavaleiros, movimenta-se
a peonagem e toda a hoste vai alegre, caminho de Guimarães, o mais forte
castelo do Condado.
Dias passados, está à vista o pendão de D. Teresa,
cercado de estrangeiros, indignos et
exteros natione. O Infante organiza suas azes para a batalha. Veste
loriga de couro cru, recoberta de escamas de ferro brunido e luzente, cujo capuz,
coberto pelo elmo, lhe esconde a cabeça ruiva. Na mão brilha o montante de pomo
doirado com guarda em cruzeta maciça e recurva, placada de prata e oiro. É
domingo, dia de S. João; e queima o sol do solstício. Numa arrancada, o arraial
em que tremula o pendão do infante, numa vertigem de esquadrões, numa reboada
de lanças e montantes, faulhando cintilações, cai como uma tempestade sobre as alheias
gentes e nas mãos da valorosa hoste portuguesa ficam a Rainha e o conde de
Trava.
Nessa gloriosa tarde, a espada de Afonso Henriques
talhou a Pátria Portuguesa.
Estava em rijas mãos o montante que a havia de
manter, alargar e consolidar. Luta contra Castela, luta contra o sarraceno,
luta diplomática. O grito de guerra, S. Tiago esforçava-o no combate à moirama.
Era o prestígio da lenda de Clavijo,
onde Ramiro I viu o Apóstolo varrer os infiéis, desfraldando bandeira branca,
onde sangrava uma cruz. E a cruz de S.
Tiago passou a símbolo. Quem atentar na iconografia medieval em que
figura essa cruz e reparar no primitivo brasão português, pode ver a sua origem
numa estilização da cruz de S. Tiago. A tenacidade na luta, o ânimo forte do
príncipe e a indomável valentia dos guerreiros não bastaram para a consolidação
nacional. Era necessário tornar a igreja independente de tutelas estranhas.
Desde o tempo dos godos, que a mitra de Toledo
exercia supremacia sobre as outras metrópoles eclesiásticas. Invocando essa
tradição, Bernardo, arcebispo de Toledo, obtivera do papa Urbano II, pela
Bula Cuncti Sanctorum, de 1088, o título e dignidade de Primaz
das Espanhas. Enquanto não foi necessário, Braga aceitou o facto sem disputa.
Mas ao passo que se caracterizava a formação portuguesa, seguiam as resistências
dos metropolitas bracarenses à autoridade que sobre eles pretendiam exercer os
arcebispos de Toledo. As fases dessa longa contestação, diz Herculano, acompanharam as do estabelecimento
da independência de Portugal.
Sabida é a confusão que no século XII havia entre
os Concílios e as cortes. Nos concílios promulgavam-se leis civis a que o clero
ficava obrigado. Reconhecida a primazia do arcebispo Toledano, ficaria este com
o direito de convocar os bispos portugueses para concílios onde se legislasse
contra a independência. Remédio? Solicitar um primado para Portugal?
Como, se o papado não aceitava a nova monarquia com receio do enfraquecimento cristão, em benefício dos
filhos de Mafoma?
Uma única solução:
- questionar o direito de primazia. Três homens que sucessivamente ocuparam a Mitra de Braga, Maurício Burdino, Paio Mendes e João Peculiar, inteligentemente lutaram pela independência da igreja portuguesa, com não menos valor do que aqueles que com a espada criaram o Estado.
Faltavam os
títulos? Forjavam-se. É
numa destas questões, num processo contra Compostela, que aparece o queixume de
que eram falsos os documentos do Liber Testamentorum de Braga. Se Paio
Mendes guiou o infante até à vitória portuguesa, o seu sucessor João Peculiar foi o grande, o formidável
obreiro político da independência.
- é ele que aproxima Afonso Henriques do papado, na época da grande influência das teorias de Gregório VII;
- é ele que vê que sem a união com o Pontífice é impossível levar a cabo a obra encetada; é ele que com sacrifícios, incluindo o da suspensão do exercício pastoral, conduz as difíceis negociações que levam, afinal, ao reconhecimento duma Pátria, livre e independente.
São trinta e sete anos de combates, conduzidos com
notável zelo e superior inteligência. Ao
lado de Afonso Henriques é a mais alta figura da fundação de Portugal, e
bem merece seu nome ficar ligado à consagração da História de povo livre, que
se gerou no Minho. Terra do Minho!
No esporão de teus montes, em centos de castros e citânias, foi porventura lançada
a semente da nossa independência. Nos flancos das suas colinas, em seus campos
ribeirinhos e fecundos, modelados por milhares e milhares de lavouras
sucessivas, a semente germinou e floriu».
FIM
In Alberto Feio, Daqui Nasceu Portugal, Câmara Municipal de Braga,
1964.
Cortesia da CM de Braga/JDACT