quarta-feira, 20 de março de 2013

Cartas. Prefácio de Silva Pinto. Camilo Castello Branco. «Pesa-lhe a tristeza irremediável da vida, as péssimas condições em que está feito o mundo para quase toda a gente. Veja ao menos se arranja saúde em Lisboa. Eu, mal de tudo e principalmente dos olhos»

Cortesia de wikipedia

Meu presado Silva Pinto.
«Não se fie na minha fecundidade apregoada pelos jornais. Há dias, davam-me a escrever cinco volumes; e há mais de quinze dias, que eu estou impossibilitado de erguer sem dificuldade a cabeça do travesseiro. Tenho a, não sei se triste se alegre, convicção de que vou em fim descansar brevemente. Este prefácio melancólico leva em vista responder com a maior sinceridade à sua pergunta. Não posso. Eu digo-o com mais justiça que os papas. Comecei um livro intitulado Raças Finas. Não é romance propriamente dito. É uma enfiada de coisas portuguesas, infâmias dos grandes, romantizadas. O titulo, como vê, é uma ironia, o pontapé tardio atirado à heráldica corrente dos cronistas que faziam fidalgos de apelidos como hoje a coroa os faz de negreiros. Este livro, se eu o concluir, não tem ainda editor prefixo; mas quer-me parecer que não é isto o que convém aos folhetins da Voz do Povo. No entanto…
Tenho gostado muito do seu modo de desmantelar o pseudorealismo do estilo à Eça. Parece-me que você continua a pacífica destruição que eu comecei, e dou-lhe a minha palavra de honra que desmantela pelo ridículo a escola. Aceite os protestos de estima do seu admirador afectivo». Camillo Castello Branco, 29-11-79.


Meu amigo
«Bom sinal, se pode safar-se. Dava-me cuidado e pena essa porcaria estúpida da febre. O meu amigo não é extremamente feliz até à inveja dos infelizes. Pesa-lhe a tristeza irremediável da vida, as péssimas condições em que está feito o mundo para quase toda a gente. Veja ao menos se arranja saúde em Lisboa. Eu, mal de tudo e principalmente dos olhos. Vejo só com um, para não ver tudo duplicado. Absurdos da óptica. Chama-se a isto uma coisa grega». Camillo Castello Branco, 20-1-80.


Meu caro amigo
Entra a rameira sifilitica (rima predestinada de Política) a contamina-lo. Já, já, sem perda de tempo, uma vilegiatura até ao Algarve. Prefira o Assis a Machiavel. E em vez de purgar a sua raiva por meio de artigos, vingue-se mediante os depurantes. A derrota dos progressistas é monumental e singular nas lutas constitucionais deste meio século de liberalismo. Só um Cristo faria ressurgir o Lazaro, a menos que o Lázaro se não converta à república e possa arrostar uma batalha nas ruas. Do parlamento não tem nada que esperar. E, postas assim as coisas, puf! Trato de calafetar com duas pitadas as gretas por onde a inspiração profética me está soprando os destinos da Lusitânia. Amanhã, quinta-feira, vou para o Bom Jesus, com Anna Plácido e com o pobre Jorge. Se o tédio me der tréguas, demoro-me alguns dias. Receba os nossos afectos agradecidos. Do seu amigo». Camillo Castello Branco, 22-1-80.

In Cartas de Camilo Castello Branco, Prefácio de Silva Pinto, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, Livraria Editora de Tavares Cardoso & Irmão, Editores Cardoso & Irmão, Lisboa, 1895.

Cortesia de E. Cardoso e Irmão/JDACT