Repercussão de Alcácer Quibir
As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«Nunca um novo reinado se iniciara, numa atmosfera tão dramática como o
do cardeal Henrique, irmão de João III e tio-avô do rei Sebastião. A população
de Lisboa, aliás como a de todo o reino vivia em ansiosa expectativa os
primeiros dias de Agosto de 1578.
Dir-se-ia pressentir que alguma coisa de funesto ocorrera no Norte de África,
para onde um monarca insensato e
caprichoso arrastara, numa aventura temerária, um exército de mais de uma
dezena de milhares de homens, entre os quais se contava a fina flor da mocidade
fidalga da nação. As últimas notícias que se tinham recebido na corte, datavam
de 27 de Julho e eram optimistas. Escrevera o próprio monarca Sebastião, com a
jactância que o levou à desgraça, que o Maluco estava perto e que, se
não se lhe escapasse, não tardaria em dar-lhe batalha.
Ainda parecia temer que o xerife lhe fugisse. Sabia-se, pois, em Portugal
que o jovem monarca não desistia e se bater com o famoso guerreiro Abde
Almélique, a quem os portugueses desse tempo chamavam simplesmente o
Maluco. E pressentia-se que o embate poderia ser fatal para as armas
nacionais. Depois, fez-se um prolongado silêncio sobre o destino dos
expedicionários. A trágica derrota ocorrera em 4 de Agosto e sete dias mais
tarde ainda nada se sabia em Lisboa. Só decorrida uma semana, em 11 ou 12, mas
provavelmente em 12, entrou a mata-cavalos na capital, vindo de Gibraltar um
mensageiro com as primeiras notícias do desastre militar, ainda muito confusas
e incompletas.
A triste novidade do tremendo desbarato do exército português tinha
chegado a Ceuta vinte horas depois de se ter consumado em Alcácer Quibir. Leonis Pereira, capitão da praça, sem
esperar por mais pormenores, tratou logo de a comunicar aos governadores do
reino por meio de uma carta, que remeteu através do Estreito para Gibraltar a António
Manso, feitor de Portugal nesta localidade, que por seu turno escreveu a Pedro
de Alcáçova Carneiro, enviando-lhe as duas cartas, a dele e a do capitão de
Ceuta. Foram estas as primeiras notícias que chegaram a Lisboa: o
exército totalmente esmagado, milhares de mortos, feridos e prisioneiros; não
se conhecia o paradeiro do rei Sebastião.
Apesar de os governadores terem feito todo o possível por dissimular a
presença do mensageiro, escondendo-o e impedindo-o de comunicar com mais
alguém, não era Lisboa, por essa época, de tão intenso trânsito que a passagem
de um postilhão estrangeiro a toda a brida não despertasse atenções. Logo se
soube que tinham chegado novas de África, e o silêncio que se fez sobre a vinda
do alvissareiro, adensando o mistério, ainda mais agravou as sombrias
preocupações de toda a gente sobre a sorte dos que tinham partido para aquela
mal agoirada aventura. Fervilhavam boatos, e o povo, mostrando-se muito
agitado, reclamava a divulgação de notícias, boas ou más. Aqui e além, em vários
pontos da cidade, produziram-se pequenos tumultos e bradaram-se protestos
contra os instigadores e cúmplices da jornada de África, que o mais comezinho
bom-senso sempre condenara.
Durante o dia 12 de Agosto,
celebraram os governadores diversas reuniões, de manhã e de tarde, muito em
segredo, e resolveram por fim enviar secretamente, no dia 13, o
provincial da Companhia de Jesus, Jorge Serrão, ao mosteiro de Alcobaça,
do qual era abade perpétuo e onde pousava o cardeal Henrique. Levava-lhe as
cartas recebidas e o pedido de regressar o mais depressa possível a Lisboa, a
fim de acalmar a grande exaltação que se verificava entre o povo. Apesar dos
seus sessenta e seis anos e meio muito achacados, o cardeal Henrique empreendeu
imediatamente e a toda a pressa a sua viagem de regresso a Lisboa, de onde
saíra melindrado pelas atitudes insolentes daquele sobrinho de quem agora não
conhecia o destino, mas que pressentia fatal. Vinha, no dizer do cronista, aquietar
o povo, que bramava com mágoa do dano geral…, e o consolar com a presença de
sua pessoa, quando de todo lhe fosse descoberta uma nova de tanto sentimento,
isto é, quando oficialmente lhe fosse
comunicada a notícia da grande derrota.
No dia 16, um sábado, ao cair da tarde, hospedava-se o cardeal-infante
Henrique no mosteiro de São Bento de Xabregas, ali recebendo ,em seguida os cumprimentos
dos governadores. Na manhã imediata, domingo,
17, os fidalgos mais idosos, que não puderam seguir na expedição, e que
tinham enviado à África filhos e outros chegados parentes mais jovens, foram
convocados pelo cardeal, que lhes comunicou as angustiosas notícias que se
sabiam. Ainda eram confusas, mas adivinhava-se que se tornariam sempre mais dramáticas,
consoante se fossem esclarecendo.
Só então a certeza da terrível catástrofe se divulgou fulminantemente
por toda a cidade. É indescritível o abalo moral sofrido pela população.
Milhares de lisboetas percorreram alucinadamente as ruas, em prantos, protestos
e imprecações». In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca,
Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT