Retratos vivos
«O maior mistério que impressionou os primeiros homens que leram a
semelhança nos rostos foi a parecença entre o pai e o filho, parecença que
transitou pelo outro sexo, o sexo outro, a mãe, admitindo que não associassem o
coito e o parto. Como é possível que a marca fique de tal modo impressa na
mulher que dela saia a figura do outro homem e o sexo que ela não tem?
Ora, a primeira resposta encontrada nos mitos antigos nunca menciona uma inerência eventual entre o
coito e o parto. A primeira resposta foi esta: porque a mãe ama tanto o rosto
do homem desejado que sonha com ele, a ponto de a aparência do homem a visitar
na ausência do homem. É uma das mais antigas definições do amor:
um desejo que deseja tão intensamente que sonha com um rosto, na ausência
desse rosto.
Que, na ausência desse rosto, gera uma epifania. O abraço ventral
demorado entre o pai e a mãe cria o fantasma do filho.
Macróbio conta o seguinte. Na presença de Júlia, a
Velha, princesa romana de quem não se podia suspeitar que não amasse os
homens e não procurasse, na corte imperial, todas as oportunidades possíveis
para se aproximar deles e os excitar, houve quem se admirasse com a incrível parecença
que os seus filhos tinham com o seu marido. Júlia respondeu:
- Vou dizer-vos como é que a mulher de Agripa faz dos seus filhos retratos vivos de Agripa. Só admito passageiros quando o porão já está cheio, nunquam nisi navi plena tollo vectorem.
E regresso ao aspecto que pretendo analisar: nas narrações mais
antigas, o reconhecimento ocorre de uma forma anormal. Há casos em que as
pessoas que se amam não se reconhecem. No santuário de Inari, Shigekata
não reconhece a esposa e faz tudo para a enganar com ela mesma. Takafuji, filho do Guarda Imperial Yoshikado,
neto do Ministro da Direita Fuyutsugui, também não reconhece aquela a quem
chama, porém, o seu retrato vivo.
Noutros casos, há um reconhecimento excessivo de quem nunca se viu
antes. É o amor à primeira vista. É também o reconhecimento excessivo entre
filho e pai. É o reconhecimento mais frequente e desmente a máxima medieval cuja
veracidade foi universal até aos últimos anos:
- Mater certissima, pater sernper incertus.
In Pascal Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe
Picquier, Arles, 1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos,
tradução de Maria Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN
972-795-043-4.
Cortesia de Cotovia/JDACT