«Há algumas alusões nos cancioneiros a
acontecimentos políticos e militares ocorridos em Portugal, como
a guerra civil entre Afonso e Sancho; mas são escassas em comparação
com as que se referem a acontecimentos em Castela: jornada de Sevilha, tomada
de Valência, morte de Fernando III e de sua viúva e outros. Tudo isto se resume
em que a chamada primitiva lírica portuguesa é, na realidade uma lírica
peninsular que teve em Leão-Castela o seu principal foco de expansão e na
Galiza, e nesta expressão incluímos o Portugal além-Douro, a sua raiz.
A arte de amar dos trovadores
A poesia de corte compilada na Cancioneiro da Ajuda e nos que se lhe seguem é,
naturalmente, muito diversa da dos cantares rústicos, que correspondem aos
gostos e interesses da gente rural, conquanto fossem também cantados nas vilas
e cidades. Ao passo que a poesia rústica e burguesa tem a sua expressão mais fiel
e característica nos cantares de amigo, de estrutura
primitiva e rígida, a poesia palaciana prefere, em geral, um género de importação
provençal, onde as combinações rítmicas e estróficas são muito mais livres,
variáveis e moldáveis à invenção do poeta: o cantar de amor, derivado
da cansó provençal. Não quer isto
dizer que o cantar de amor seja exclusivo da poesia de corte: há cantares de
amor escritos por habitantes das cidades, como os de João Airas, burguês de Santiago, ou os de Vidal,
judeu de Elvas; assim como há
cantares de amigo palacianos de invenção, se não de inspiração e conteúdo.
O rei Dinis é autor de grande número
deles; e, se em muitos parece procurar manter-se fiel à tradição folclórica,
noutros injectou um conteúdo cortesão. Ao contrário da cantiga de amigo, o
cantar de amor não sugere ambientes, sejam físicos, determinados por
referências ao mundo exterior, ou sociais, resultantes da presença de
personagens interessados no enredo amoroso; não se refere à mãe, ao santo da
romaria, às ondas do mar ou às árvores em flor. Isto resulta de, ao contrário da
poesia popular, esta não ser dramática. Só duas ou três vezes respigamos
alusões ao mundo ambiente:
- um poeta admirou uma dama por entre as ameias de um castelo;
- outro perdeu-se por uma mulher que viu em cabelo entoando um cantar. Estar em cabelo, nesta época, era uma antecipação de estar nua.
Não há espaço à volta nos cantares de amor, se
exceptuarmos as pastorelas, que
imitam de perto as provençais, mas só a
voz que canta na solidão: uma súplica do apaixonado para que a senhor
reconheça e premeie o seu serviço;
ou um elogio abstracto da beleza dela; ou uma descrição dos tormentos do poeta
dirigida à piedade ou mesura
da senhor.
O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como
um serviço. O cavaleiro servia
a dama pelo tempo que fosse necessário para merecer o seu galardão. Consistia
esse serviço em dedicar-lhe os pensamentos, os versos e os actos; em estar
presente em certas ocasiões; em não se ausentar sem licença, etc. O servidor
está para com a senhor como o vassalo feudal para com o suserano:
E que queria eu melhor
de seer seu vassalo
e ela mha senhor?
Já falámos do poeta, regressado de França, que
emprega, para definir este serviço, a terminologia feudal francesa: je suis votre homme-lige. A regra
principal deste serviço era,
além da fidelidade, o segredo. O cavaleiro devia fazer os possíveis para que
ninguém sequer suspeitasse do nome da sua senhora, indo até ao sacrifício de se
privar do seu convívio, ou de se fingir apaixonado por outra. O disfarce, que
consistia em dedicar versos a uma dama para ocultar a verdadeira amada, era
frequente. Na grande maioria das cantigas de amor, os requerimentos assíduos do
servidor visam a conseguir da senhor
uma coisa que se designa pela expressão fazer bem. É fácil compreender o que
significa este eufemismo: um poeta, referindo-se a uma soldadeira venal, conta
que ela não lhe quer fazer bem
sem que primeiro o pretendente lhe pague um maravedi. O rei Dinis, tendo
conseguido da senhor dos seus cantares de amor que ela fizesse todo o bem
sem faltar nada, pede-lhe, no fim, segredo mútuo, porque, diz, se este preito
for sabido, nem ele nem ela tirarão daí estima nem louvor. De resto, o
sofisticado nome de senhor é aplicado a concubinas, a mulheres de vida livre e até
a meretrizes.
Os livros de linhagens relatam diversas aventuras
amorosas de homens e de mulheres da nobreza; e essas histórias tiveram a sua expressão
poética. É conhecido o caso de D. Maria Pais Ribeira, inspiradora de versos e
mãe de filhos de Sancho I, que teve na corte e na sociedade portuguesa uma alta
posição. No próprio texto dos cancioneiros encontramos as pegadas de um rei
apreciador das filhas dos seus súbditos: uma rapariga que pergunta à mãe o que
há-de fazer porque o rei a requereu de amores:
- Cabelos,
los meus cabelos,
El-rei me enviou por elos.
Madre que lhis farei?
- Filha
dade-os a el-rei.
Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu
modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada,
a que chama senhor, tornando-a um objecto quase inacessível; a atitude é a
de uma espécie de ascese abstinente, seja qual for a realidade a que as
palavras servem de cortina. A regra do segredo não é só, porventura, uma
precaução exigida por amores clandestinos, numa sociedade em que o adultério era punido por lei
constantemente transgredida, mas uma regra ascética que tornava o amor
mais intenso quanto mais solitário e à margem da sociedade. O amor trovadoresco
e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossível. Os seus modelos
são os amores de Tristão e Isolda, ou de Lançarote e a rainha Genebra. Nisto,
os cantares de amor distinguem-se como o preto e o branco dos cantares de amigo.
A clandestinidade nos amores e o adultério são tema obrigatório da literatura
amorosa medieval e supõem-se nos grandes casais de amantes que nos legou o
ciclo arturiano. A condessa Maria de Champagne sentenciou solenemente que o
amor entre casados é impossível». In António José Saraiva, O Crepúsculo da
Idade Média em Portugal, Gradiva Publicações, Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.
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