D. Luiz e a Pelicana
«Numa fagueira madrugada de um dos dias do mês de Agosto de mil
quinhentos e vinte e nove sua alteza o senhor infante Luiz, irmão de el-rei
João III, e o sei dilecto amigo e condiscípulo João de Castro, futuro vice-rei
da Índia, acompanhados de um grupo de escudeiros e lacaios, eram vistos a
atravessar a ponte de barcas, que naquele tempo, existia cerca da foz do rio
Coa. Encaminhava-se a comitiva para as terras de Bragança, onde, para fins
venatórios, o respectivo duque Jayme a esperava. O infante Luiz caminhava
triste e pensativo, a despeito do bom humor do seu amigo, humor temperado pelo
sadio ar puro e balsâmico das campinas e matagais. No que pensaria?
- Grande labor de espírito vos
interessa hoje senhor! Disse João de Castro, dirigindo-se-lhe e fazendo ladear
um pouco o seu valente corcel. - -Ah!... Desculpai-me João. Vinha a pensar... a
pensar... nem eu sei em quê. Dizei-me: gostais desta feracíssima vegetação?...
É magnífica, não é ?... - Soberba, meu senhor. - E um castelinho aqui… rodeado
de árvores frondosas… e uns muros muito altos?... - Devia ser uma encantadora
vivenda para milhafres… - Bem se vê que sois um gélido matemático.
- E se dentro desse castelinho existisse uma deliciosa rapariga, cujos lábios carminados vos inundassem de beijos... cujo farto seio arfasse junto ao vosso… e cujos olhos negros vos mergulhassem numa doce noite escura?
- Ah!... ah!... ah!... gargalhou
o moço Castro. Vê-se, meu senhor, que trazeis novo romance na mente. - Ah! E
como é melodioso e sentido o vosso Dom-Duardos!... - Onde vistes o Dom-Duardos?
!... - Na mão de Gil Vicente. Mas, se o velho mestre foi indiscreto,
perdoai-lhe, senhor, pelo muito que vos quer e pelo apreço em que vos tem. O
único culpado na inconfidência, fui eu, pois quase o obriguei a deixar-me
decorar os vossos versos… - Decoraste o meu romance?... - Com mais prazer do
que decorava convosco as lições de Pedro Nunes.
NOTA: Pedro Nunes, o glande matemático, nasceu na vila de Alcácer
do Sal, em 1492, segundo alguns autores; falecendo, no dizer de Bayle, em 1577.
Fez os seus estudos em Lisboa e Salamanca, foi lente de filosofia na Universidade
de Lisboa, e cosmógrafo-mór do reino. Deixou muitas obras de valor. Os seus mais
laureados discípulos em matemática foram o infante Luiz e João de Castro.
Ides ouvir. E João, dando à voz e ao rosto másculo uma expressão menos
viril, começou a recitar o Dom-Duardos ao som pouco eufónico do
choutar dos marroquinos. A seu turno, o infante, embevecido pelo ritmo dos
próprios versos e pela profunda filosofia que eles continham, repetia com um
mal disfarçado tremor na voz:
Saibam quantos são nascidos,
sentença que não varia:
contra a morte e contra amor
que ninguém não tem valia.
- Grande verdade é essa, senhor.
Que
poder terão os homens, que resistir possa a um amor veemente?... O moço
duque de Beja não respondeu logo. E o futuro vice-rei da Índia, que, além da sua
fina e ilustrada observação, o conhecia tão bem como se fora ele próprio, entrou
a convencer-se de que o infante estava ferido, mas muito ferido no mais íntimo
do coração. Aquele mutismo profundo e raras vezes interrompido… Aquela ascética
meditação de tantas léguas de caminho… Aquele estranho respirar ofegante… Aqueles
pueris devaneios de castelinho… Aquele quadro pitoresco da donzela de olhos
negros… Tudo isto, concatenado e meditado, dava enfim ao moço Castro, a prova
moral que o firmava em semelhante presunpção. Ah! Que se ele pudesse dar-lhe
alívios?!» In J. A. Oliveira Mascarenhas, P Prior do Crato, romance histórico,
ilustrações de Bemvindo Ceia, Typ. Lusitana-Edirora de Arthur Brandão, Lisboa,
1902.
continua
Cortesia de Typ. Lusitana/JDACT