(Continuação)
A Voz Dramática do “Velho Portugal”
«Assim falava o Velho Portugal
aos seus filhos dessa época. Sua voz comovente só em certos momentos parecerá
um tanto desarmoniosa aos portugueses de hoje, sobretudo naqueles passos em que
louva a bondade de alguns reis, como Sebastião e o próprio cardeal-rei Henrique
então reinante, os maiores responsáveis da situação angustiosa a que a nação
chegara nesse triste período. Não esqueçamos, porém, que o objectivo do anónimo
panfletário era robustecer o patriotismo lusitano, fomentar a união de todas as
classes, criar um bloco nacional contra a mais do que provável agressão da
Espanha, que já se preparava com todo o afã.
Mesmo os erros de visão, que neste valioso documento se notam, reflectem
como um espelho as ideias, as crenças, os costumes, bem como os sentimentos
comuns dos Portugueses desse tempo. É irrisório e falso, por exemplo, acusar o rei católico de permitir com a
sua suposta tolerância nos países protestantes, Alemanha, Inglaterra e França,
cita o anónimo, que nasçam hereges no país vizinho. Esta peta destinava-se a
impressionar os católicos lusitanos. Sabe-se que, pelo contrário,
Filipe II moveu odiosas perseguições aos chamados hereges em todos os territórios
que dominava, tornando assim ainda mais impopular a sua suserania; e sabe-se,
modernamente, que foi precisamente na Igreja reformada que a burguesia desses
países se firmou para ascender na escala social e interferir, sob a bandeira da
liberdade de consciência, mais directamente no governo dos Estados, preparando
a sua classe para mais ousadas conquistas; sabe-se ainda que Portugal, imitando
Castela, desde o reinado de João III, se lançara, por meio da Inquisição
(maldita), numa perseguição feroz à burguesia, com o pretexto de reprimir a
her'esia dos cristão-novos; e
depreende-se que foi uma burguesia, com sua mentalidade prática, sua vocação
para a administração pública e sua habilidade para os negócios, que faltou na
hora histórica em que a nação, debilitada pela derrota de Alcácer Quibir, mais
precisava de todos os seus recursos e de uma classe medianeira das outras
classes, que lhes cimentasse a coesão necessária para resistir ao tremendo embate
que fatalmente ia sofrer.
Também se compreende que o Velho Portugal, ansioso por criar
esperança e optimismo no coração de seus filhos, afirmasse que o recente
desastre do Norte de África apenas o afectara nos cabelos e nas unhas,
e que o resto do corpo lhe
ficara inteiro e são, que era
o que contava. Mas, respirando a atmosfera da sua época, os Portugueses de há
quatro séculos não podiam fazer reparo nestes lapsos, nem notavam estes
equívocos, que talvez fossem convicção do próprio escritor anónimo; viviam-nos,
respiravam-nos, sentiam-nos, tal como hoje vivemos, vibramos e nos alimentamos
de outros ideais, equívocos, e mitos, que por certo farão sorrir os vindouros,
se eles não forem um pouco mais tolerantes do que nós.
A Situação de Portugal após a Morte do Cardeal-rei
Ao contrário do que as recomendações
ou lembranças do Velho
Portugal com tanto optimismo asseveravam, eram bem tristes e precárias
as condições em que o rei Henrique deixara o país, à data da sua morte em
Almeirim: 31 de Janeiro de 1580». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra
Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
continua
Cortesia de Romano Torres/JDACT