Contra o Silêncio que Cala o Mal
«Que fazer? Convém calar ou gritar sobre os tectos
a infiltração do mal na Igreja? O silêncio é de ouro, mas há silêncios que
matam:
- justamente, o caso do silêncio que cala o mal para não provocar escândalo pode confundir-se com cumplicidade com quem semeia cizânia;
- o silêncio que pretende respeitar a libertinagem dos outros é deixar andar as coisas em vez de se indignar com o mal espalhado na casa de Deus para sustento dos homens.
São João Leonardo escrevia a Paulo V (605-21) a respeito da reforma universal
da igreja postridentina:
- Quem quiser realizar uma séria reforma religiosa e moral deve proceder, antes de mais, como um bom médico, a uma diagnose atenta dos males que afligem a Igreja, para poder estar em condições de prescrever para cada um deles o remédio mais apropriado. A renovação da Igreja deve verificar-se, de igual modo, nos primeiros e nos últimos, nos chefes e nos súbditos, em cima e em baixo. Deve começar por quem manda e estender-se aos súbditos. Seria necessário que cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos e párocos fossem capazes de dar a melhor garantia para o governo do rebanho do Senhor.
Não é de ânimo leve que se decide menoscabar estas
sofridas notas, penetradas de oração e de conselhos de pessoas misticamente
credíveis que, independentemente umas das outras, exortam a colocar por escrito
as ânsias, as palpitações sentidas no próprio coração da Igreja assolada, no exterior,
pelo ateísmo do pós-guerra mais dessacralizante e, no interior, denegrida e
perturbada por erros teológicos soprados pelas cátedras universitárias
pontifícias aos docentes e discentes, mau grado e de certo modo graças à impulsão
dada pelo Vaticano II.
Dados os riscos da empresa em dizer as verdades
nuas e cruas, sem véus, sem rodeios e sem dissimulações, a equipa conferiu
mandato para fazer chegar ao vértice, a alguém mais próximo da pessoa do Sumo
Pontífice, as apreensões face ao projecto no sentido de colher o seu
pensamento; o autorizado interlocutor, em resposta, expressou-se assim:
- Auguro-vos todos os desideratos para vós e para aquilo que tendes em mente realizar, porque imagino quanto a empresa seja difícil.
Escândalo necessário
A aliança de Deus com os pobres e os humildes está
em contradição com a arrogância de qualquer poder que elimina e condena o
inocente porque é incómodo. Este livro é um eco captado no deserto, um
pombo-correio com uma mensagem na pata, uma garrafa no meio do mar contendo dentro
uma advertência. Jeremias, como mau político, por cada denúncia do que aconteceria
ao seu povo, acabava de imediato na prisão: mas, como profeta clarividente,
procurava fazer luz sobre a política que o povo deveria seguir para, se tornar
a Israel de Deus. Homem pacífico, foi escolhido para acusar uma sociedade em
decomposição e os poderosos combatiam-no porque punha em dúvida as seguranças e
as ilusões dos homens do seu tempo.
Incessantemente perseguido e vitorioso, Jeremias
terá a coragem de resistir às mentiras e de repelir os silêncios da vergonha,
como Cristo que disse:
- Tu, portanto, cinge os teus rins, ergue-te e anuncia-lhes tudo o que te ordenarei; não te amedrontes diante deles, pelo contrário farei que sejas temido perante eles. Hoje faço de ti uma fortaleza, um muro de bronze contra todo o país, contra o Rei de Judá e os seus chefes, contra os seus sacerdotes e o povo do país. Mover-te-ão guerras, mas não hão-de vencer-te.
Profeta recalcitrante, escolhido pelo Senhor para
uma missão para que não se sentia idóneo, Jeremias resistia:
- E disse-lhe: Ah! Senhor Javé, vede, não sei falar; sou um moço! Mas Javé respondeu: Não fales assim, mas vai ao encontro de todos aqueles a quem te mandarei e diz-lhes tudo aquilo que te ordenarei. Não tenhas nenhum medo diante deles, porque estou contigo para te proteger, oráculo de Javé.
Sentimento de segurança que o acompanhará durante
toda a vida. Porta-voz arrasador, proclama a urgência de renovação radical para
Israel e anuncia a nova aliança no coração. Homem apanhado entre dois fogos, Javé e Israel, Jeremias
vive uma situação paradoxal: nem rei, nem político, nem pontífice, nem chefe,
nem assalariado, Jeremias é tão-somente um homem que não disfarça. Débil
e forte, penetrante e veemente, sensível e duro, mártir protestatário. Admirável
exemplo de um homem de Deus que sabe permanecer íntegro sob a influência mais
forte que existe, a influência divina, à qual adere irresistivelmente:
- Tu me seduziste, Javé, e eu deixei-me seduzir; tu tomaste conta de mim: foste o mais forte.
Jeremias é o mais cristão dos santos da
antiga lei, o mais vulnerável, o mais fraterno, o mais próximo dos corações
pecadores e divididos. Verifica-se nos livros inspirados que os profetas, mais que
homens do templo e servos do palácio, são porta-vozes de Deus na ajuda à
humanidade futura que se renova continuamente. Muitas vezes, os santos acabam
por ser vítimas de certos homens da Igreja, quando profetizam os males
evidentes com que estes se sujam: Savonarola, Rosmini, Zeno, padre Pio, para
citar apenas alguns. Se Deus investe alguém com o carisma de denunciar o
relaxamento, as riquezas, as vigarices, as maquinações, as ociosidades, os privilégios
de uma certa casta clerical, dos que se encapotam com zelo místico para
fingir-se defensores da santidade da Igreja, o denunciante deve esperar uma
reacção tão feroz quanto a denúncia. É sempre assim: consideram a sua consagração
como um investimento humano e põem-se a negociar com Deus mercantilizando em
interesse próprio». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O
Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras,
2005, ISBN 972-46-1170-1.
Cortesia Casa das Letras/JDACT