A Formação
da Sociedade de al-Ândaluz
«A
revolta e martírio dos cristãos de Córdova, ocorrida em 859, e o martírio nessa cidade do bispo Sisenando de Beja bem
como os tormentos aplicados ao bejense Tiberino, revelam a incomodidade
da maioria cristã e a atracção irresistível da religião do poder. Se os infiéis nos vêm o traje e insígnias
de ordem sacerdotal, aplaudem-nos burlescamente como a loucos ou a fátuos, fora
o quotidiano escárneo dos seus rapazes que, não satisfeitos com os seus gritos
insultantes, nos perseguem incessantemente à pedrada. E o mártir
Eulógio prossegue:
- Não ressoa no coro a voz do salmista, nem a do leitor no púlpito; nem o diácono evangeliza o povo, nem o sacerdote espalha o incenso nos altares. Ferido o pastor, o lobo conseguiu dispersar o rebanho católico e deixou a igreja privada de todo o ministério sagrado. Ai de nós que temos por delícia viver debaixo da dominação gentílica e não recusamos estreitar vínculos com os infiéis e, com o contínuo trato, participamos frequentemente nas suas profanações.
A
revolta dos cristãos de Córdova dos meados do século IX é quase contemporânea
da revolta dos muladis no Andaluz. A
dinastia dos Marwan al-Jiliqi e a do seu aliado Sadun ibn Fath al-Surumbaqui
mantiveram a chama da rebelião no Gharb al-Ândaluz durante cerca de 45
anos. Aliaram-se aos cristãos mas Ibn
Marwan manteve a invocação do emir de Córdova na oração de sexta-feira.
O Gharb
al-Andalus
O
centro e sul do território português integrava-se no Gharb al-Ândalus cujas
cidades principais eram Sevilha, Badajoz, Niebla, Beja, Lisboa, Évora,
Santarém, Faro, Silves, Mértola, Alcácer do Sal. Não constituía uma
entidade política ou administrativa mas apresentava suficiente originalidade para
os autores distinguirem o ocidente ou al-Gharb (Algarve), do centro e do oriente do Andaluz.
Neste ocidente, em território que é
hoje Portugal, emergiu durante quatro décadas o governo autónomo dos Ibn
Marwan al-Jiliqui (O Galego)
com o centro político em Badajoz, cidade fundada pelo primeiro Galego, e o
domínio da região do Guadiana. Um outro rebelde, seu associado, Sadun
al-Surumbaqui unbaqui dominou a região entre Santarém e Coimbra. Nesse
mesmo tempo, aliaram-se aos rebeldes Abu al-Malik ibn Abu alJuade que se
apoderou de Beja e fortificou o castelo de Mértola e ainda Ibn Bakr, senhor de Santa Maria (Faro), no cantão de Ossónoba. Das faldas da Estrela ao Algarve,
o Ocidente escapava ao domínio do emir de Córdova.
Bakr
ibn Yhaya ibn Bakr transformou Faro
numa cidade-estado. Rodeou-a de muralhas e de portas de ferro. Cercou-se dum
conselho e duma administração de finanças; recrutou soldados e acumulou
provisões. Ordenou aos súbditos que dessem de comer aos viajantes e albergassem
os estrangeiros. Velava de tal modo pela segurança dos caminhos que se podia
viajar pelo território como se estivessem em casa ou na dos seus parentes. Após
a queda do califado de Córdova (1009),
surgiram pequenos principados em Silves, Faro e Mértola. Em Silves
(1048-1063), a família do
historiador Ibn Mozain dirigiu durante quinze anos a cidade e a sua
região com o apoio dos habitantes por quem repartiu as riquezas até ser
submetida pelo pai de Almutamide, Almutádide
de Sevilha. Um dos Mozain, Abu
Abd Allah, era amado pelos súbditos pela dedicação, amor ao estudo,
pela sua cultura e a amplitude dos seus conhecimentos. Mas rapidamente todo o
centro e sul do Garbe seriam distribuídos pelo reino berbere de Badajoz e o
reino dos abádidas de Sevilha.
No Gharb al-Ândalus, Sevilha e
Badajoz eram os grandes centros culturais nos séculos XI e XII. Para elas
se dirigiam os literatos nascidos mais a ocidente. Em Sevilha, durante o governo
do bejense Almutamide, floresceu uma pléiade de literatos à imagem da
corte poética dos míticos califas abácidas Harun al-Rasid e al-Mamun. E
há notícias de que Silves, Santarém, Faro, Évora, Lisboa se tornaram
locais significativos de cultura. Um foco xiita foi jugulado no tempo de Abderramão III em Évora e
Santarém. Em Lisboa apareceu um auto-proclamado descendente de Fátima, a filha do
profeta Maomé.
Os geógrafos não
pouparam elogios a algumas cidades do território português. Coimbra,
cidade pequena, mostrava-se inexpugnável envolta na sua muralha rasgada por
três portas, uma delas a da Almedina. Envolviam-na vinhas, árvores de
fruto e os moinhos movidos pela água do Mondego». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das
Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999,
IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.
continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT