Na areia fina o singelo traço de dois destinos num caminho. In Joana
Ruas
«Para lá deste olhar profundo, há outro espaço, outro mundo, que não
sei dizer. Unicamente sinto e pressinto a realeza de estar vivo quando pardais
soltos voam sobre mim e espalham liberdade em meu redor, num chilrear constante
e melodioso que transforma pensamentos em palavras e enche páginas brancas do
meu Eu. Mas muito mais do que palavras, paira no ar o silêncio de horas gastas,
que adia respostas, porque perguntas não há que resistam ao fugitivo, sempre em
viagem de sonhos.
Não preciso sequer de tentar compreender a distância que separa a Vida
da Morte. O tempo não é o que escolhi, mas sim o espaço onde mora o meu
corpo, rodeado de outros corpos inquietos, indecisos e desesperados, à procura
de coisas exteriores que não alimentam o sentido da vida. E tantas vezes
obrigada a não ser livre no mundo dos outros, escolho a solidão num canto do jardim,
onde fecho a porta à hipocrisia e ao egoísmo, em defesa do castelo que
construí. Lá dentro, sim, tenho tudo aquilo que enche a alma de ar puro e
fresco, porque num espaço sem gente, a força da razão e do amor suplanta a
nostalgia de estar só.
Neste lado de cá, encontro-me mais dificilmente e cada vez mais
raramente, porque o vazio inunda a alma das gentes, tão perdidas num labirinto
de materialismo e malabarismo. Nesta sociedade que brilha simplesmente à custa
do sol, sobressai a pequenez do Ser, mirrado de inveja e vaidade.
Consumindo e consumido, o homem e/ou mulher transborda de
agressividade, denunciando-se a si próprio. Espectadora das muralhas do meu
castelo, enxergo as dores das crianças. Esses olhos inocentes e profundamente
tristes, que nada entendem da crueldade do cidadão(ã). Muitas lágrimas, que
então ensopam o rosto do meu Eu, descem à terra seca para que as flores voltem
a nascer!» In Lisa Flores, 1999, Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid B.
Martins, colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN 972-699-785-2.
Cortesia de Nova Vega/JDACT