domingo, 14 de abril de 2013

Cartas a Ninguém. Ilustração de Ingrid Martins. Lisa Flores. «Escolhi um modelo enorme, linha grossa para não se desfiar ao mais pequeno tombo. Depois pu-lo dentro de um cesto de vime. Valerá a pena plantar árvores e flores, quando a maldade as destrói?»

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Na areia fina o singelo traço de dois destinos num caminho. In Joana Ruas

«Para lá deste olhar profundo, há outro espaço, outro mundo, que não sei dizer. Unicamente sinto e pressinto a realeza de estar vivo quando pardais soltos voam sobre mim e espalham liberdade em meu redor, num chilrear constante e melodioso que transforma pensamentos em palavras e enche páginas brancas do meu Eu. Mas muito mais do que palavras, paira no ar o silêncio de horas gastas, que adia respostas, porque perguntas não há que resistam ao fugitivo, sempre em viagem de sonhos.
Não preciso sequer de tentar compreender a distância que separa a Vida da Morte. O tempo não é o que escolhi, mas sim o espaço onde mora o meu corpo, rodeado de outros corpos inquietos, indecisos e desesperados, à procura de coisas exteriores que não alimentam o sentido da vida. E tantas vezes obrigada a não ser livre no mundo dos outros, escolho a solidão num canto do jardim, onde fecho a porta à hipocrisia e ao egoísmo, em defesa do castelo que construí. Lá dentro, sim, tenho tudo aquilo que enche a alma de ar puro e fresco, porque num espaço sem gente, a força da razão e do amor suplanta a nostalgia de estar só.
Neste lado de cá, encontro-me mais dificilmente e cada vez mais raramente, porque o vazio inunda a alma das gentes, tão perdidas num labirinto de materialismo e malabarismo. Nesta sociedade que brilha simplesmente à custa do sol, sobressai a pequenez do Ser, mirrado de inveja e vaidade.
Consumindo e consumido, o homem e/ou mulher transborda de agressividade, denunciando-se a si próprio. Espectadora das muralhas do meu castelo, enxergo as dores das crianças. Esses olhos inocentes e profundamente tristes, que nada entendem da crueldade do cidadão(ã). Muitas lágrimas, que então ensopam o rosto do meu Eu, descem à terra seca para que as flores voltem a nascer!» In Lisa Flores, 1999, Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid B. Martins, colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN 972-699-785-2.

Cortesia de Nova Vega/JDACT