sexta-feira, 19 de abril de 2013

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «E foi nesse mesmo momento que entrou um fâmulo, que se aproximou silenciosamente do Inquisidor-mor e lhe falou ao ouvido. Sua Excelência respondeu-lhe: - Está bem, que entre. Depois dirigiu-se ao franciscano»

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« - E, durante alguns minutos, cantou as excelências do tabaco e a conveniência de o usar. A seguir, continuou ' - Não deixa de ser curioso, Excelência, e digno de ter em consideração, o facto de que esta manhã, com as primeiras luzes da aurora, um formidável dragão, de pelo menos sete cabeças, mas possivelmente de mais, tenha abraçado as fundações da alcáçova com o propósito de a destruir, segundo declarações de testemunhas que o viram, e como já sabe toda a gente na cidade. De outros prodígios também se fala, embora não de tanta monta. O meu confidente Satanás, que me conta muitas coisas, mas não todas as que maquina, como é óbvio, costuma adoptar a figura de dragão multicéfalo quando quer ser especialmente notado, já que um bicho dessa natureza, que se saiba, não o criou o Senhor.
 - O que a mim me interessa, padre Rivadesella, é essa outra metamorfose, que me parece menos lógica ou, pelo menos, inadequada ao caso. Segundo o relatório que acabais de ler, de todas as figuras de bruxas e de bruxos que pulularam esta última noite pelo céu da cidade, uma era mais bela do que as restantes, tinha sexo de varão e, ao deslizar pelos ares, deixava um rasto de prata. Segundo o meu entendimento, mais parece figura de anjo, e não dos menores. - Não podemos esquecer-nos de que o maior de todos eles foi Lúcifer, e que entre os seus atributos está o da beleza.
 - A si apresenta-se-lhe assim, como um formoso mancebo? - Para comparecer aos seus encontros com este humilde servidor de Deus, Satanás costuma escolher figuras mais modestas. A mais nobre delas é a de um fidalgo entrado em anos, com um bigode muito erecto; na outra ponta da escala estão o cão ou o passarinho que se instalam no meu regaço e falam comigo por sinais. Entre cavalheiro e pássaro, tudo o que Vossa Excelência se digne imaginar. - E como sabe Vossa Paternidade que é o Diabo? - Temos as nossas contra-senhas, e ele explicou-me que adopta uma forma ou outra por prudência e para não me comprometer. Não se esqueça Vossa Excelência de que as minhas relações com o Maligno, embora sejam conhecidas dos meus superiores hierárquicos e das autoridades competentes, até chegar a Roma, são ignoradas pelos frades do meu convento, apesar de algum vivaço suspeitar delas. Do mesmo modo, Satanás oculta aos seus sequazes as suas relações comigo. Por alguma razão, ontem, não só não veio, como me ocultou a sua intenção de concentrar, no céu da cidade, essa gentalha que o serve.
 - Gente belíssima também, segundo diz o relatório, e dada a toda a espécie de fornicações. - Será que Vossa Excelência esperava outra coisa de semelhantes pessoas? - Esperava que, pelo menos, para o fazerem, tivessem que se deitar. Mas, como Vossa Paternidade leu, faziam-no mesmo no ar, sem perderem o equilíbrio, e dando cambalhotas. Padre Rivadesella, o Diabo trata tão bem os seus amigos que não me espanta que os tenha. A Vossa Paternidade, faz-lhe algum favor? O padre Rivadesella ficou um momento pensativo. - Sim, Excelência, mas gratis et amore, ou pelo menos assim parece. Eu creio que precisa de desabafar com alguém das suas preocupações, e escolheu-me a mim. - Pela sua discrição, se calhar? - Poderia ser por isso...
E foi nesse mesmo momento que entrou um fâmulo, que se aproximou silenciosamente do Inquisidor-mor e lhe falou ao ouvido. Sua Excelência respondeu-lhe: - Está bem, que entre. Depois dirigiu-se ao franciscano. - Não terá Vossa Paternidade nenhum inconveniente em conviver embora apenas por alguns minutos, com um frade capuchinho? - Na presença de tão alto magistrado, as rivalidades adiam-se. - É. o padre Villaescusa. - Ah, o capelão-mor do palácio! Belo figurão. - De belo não tem nada, padre Rivadesella, pelo contrário, que nessa matéria não deve muito à bondade do Senhor. Quanto a figurão, em contrapartida, estou de acordo. O fâmulo mantinha aberta a grande porta com guarnições de bronze e figuras pagãs na decoração, apesar de castas. O padre Villaescusa entrou, fazendo reverências cortesãs.
 - Que o Senhor acompanhe Vossa Excelência e lhe dê longos anos de vida! - Levou a mão ao nariz. - Também aqui chegou esse fedor do inferno? Refiro-me, como é óbvio, a esse cheiro sulfuroso que penetrou na cidade e que nos tem a todos alarmados. - Pois o meu nariz não deu, até agora, por semelhante pestilência». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da E. Caminho/JDACT