O casamento
«As festividades duraram oito dias, durante os
quais diversas qualidades de vinhos foram servidas sem restrições: o vinho
claro do Reno, o tinto de Beaune e até o doce moscatel trazido de Portugal, a que
se juntou o hipocraz, infusão de
canela e amêndoa misturadas com aguardente e açúcar. Tanto no interior do
palácio como na cidade sucederam-se os divertimentos: danças, corridas de
cavalos, jogos e atracções. O duque fez a sua entrada pela praça do mercado
acompanhado por 24 cavaleiros e escudeiros envergando ricas vestes guarnecidas a
fio de ouro e prata, precedidos de justas anunciadas por 164 trombetas. Ao cair
da noite serviu-se o jantar no palácio, seguindo-se o baile. O duque, sempre
rodeado de cavaleiros, dançou com Isabel
mas também com outras damas e donzelas, reporta Monstrelets.
Em 1430,
Filipe, então com 34 anos, chegava ao apogeu do prestígio, da glória e da
prosperidade. Com Isabel, a corte de
Borgonha podia ser reconhecida entre as mais poderosas da Europa. Os banquetes,
os jogos, os torneios, as festas populares e sobretudo o reagrupamento da
nobreza dos seus estados, a aristocracia e os famosos cavaleiros, todo este
conjunto contribuía para pôr em alta o ânimo do grão-duque do Ocidente. A sua
visão de homem de Estado, que lhe permitiu criar afinidades com as grandes
famílias do mundo, de que resultaram laços sólidos, não podia senão reforçar-se
com a presença da duquesa, que lhe trouxera respeito e estabilidade. O duque
estava realmente feliz por ter a seu lado uma mulher que assumia com distinção
as funções de majestade real, além de saber zelar pelo seu lugar de
primeira-dama entre as damas de corte de Borgonha.
A beleza de
Isabel causou viva impressão na corte de Filipe, que adoptou então a divisa
Autre n'antray. Para melhor a honrar
o duque instituiu a ordem do Tosão de Ouro, tornando-se assim a infanta
a primeira conquista do seu fundador. O Tosão dourado figurando sobre a
capa dos cavaleiros podia ser uma referência à cabeleira da futura duquesa mas
talvez também, como outros sugeriam, quem
sabe!, uma inspiração devida a uma das várias favoritas do duque. Estas desencontradas
alusões, sublinhando os costumes liberais de Filipe, o Bom, chocavam com a solenidade gravada para sempre nos documentos
que autenticavam a criação da ordem de cavalaria e cuja data coincidia com a do
casamento:
- A dez de Janeiro, que era o dia da solenidade do casamento em Bruges entre nós e a nossa muito querida e muito amada esposa Elizabeth, instituímos esta Ordem.
Outros historiadores vêem nesta reapropriação dos
ideais da cavalaria a ambição de Filipe em dotar-se de meios para igualar a
grandeza dos reis que o rodeavam e ameaçavam, fossem os de França, da Inglaterra
ou da Alemanha. Por isso ele selou igualmente um pacto de honra com os
fundamentos da Cristandade, dotando os cavaleiros de uma mística que transcendia
o interesse imediato da sorte das batalhas. As Cartas desta fundação diziam:
- Por grande amor pela nobre classe dos cavaleiros, da qual temos no coração a honra e o desenvolvimento, a fim que a verdadeira fé católica, a fé da nossa mãe a Santa Igreja, e para que a tranquilidade e a prosperidade da coisa pública sejam defendidas, guardadas e mantidas, para glória e elogio do Todo-Poderoso, nosso Criador e Redentor, em honra da Virgem Maria, sua gloriosa mãe e de Nosso Senhor, de Santo André, dos apóstolos e dos mártires, pela recompensa da virtude e dos bons costumes.
Os deveres dos cavaleiros estavam definidos em 94
artigos que punham igualmente em relevo a defesa da honra do duque e a segurança
do Estado. Os primeiros 24 cavaleiros que Filipe havia escolhido, entre os mais
valorosos, foram imediatamente designados. O infante Fernando, irmão
da recém-casada, desfilou à frente deles ao longo das ruas de Bruges, todos
cobertos pelo amplo manto vermelho de estrias negras e amarelas, exibindo os
seus colares de pedras, precedidos por uma liteira onde seguia a infanta. Mal a
festa terminou, o casal rumou a Gand antes de visitar as principais cidades da
Flandres. Isabel teve aí um primeiro
contacto com os habitantes. No fim de Fevereiro, os duques fizeram a sua
entrada em Arras.
A corte de Borgonha
Segundo os cronistas, da corte ducal irradiava um
brilho só comparável ao do Rei-Sol. Para mais, os duques tanto se deslocavam de
Bruges a Gand e a Bruxelas como a outros castelos das suas terras do Norte e a
Dijon, na Borgonha. Os móveis, as tapeçarias, a baixela, seguiam os senhores e
os serviçais, num longo comboio de viaturas. Veremos que o cerimonial, a
etiqueta e o fausto tinham uma função política, permitindo assegurar a
obediência do povo e dos vassalos aos duques. Por outro lado, estas normas
determinavam a repartição das atribuições e o lugar de cada servidor. A
residência ducal abriga o pessoal político e o pessoal doméstico ligados à
Casa. Entre os primeiros encontram-se o chanceler, os membros do Conselho, os
camareiros, os oficiais de justiça, os contabilistas, os grandes oficiais,
secretários, escrivães, ocupando-se das diferentes funções da administração sob
supervisão do duque». In Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal –
duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal, Duquesa de
Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração da Europa Medieval, tradução de Júlio
Conrado, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-23-4374-9.
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