«O infante usava uma blusa de linho branco e tinha à cintura
um punhal fino de prata enfiado num pequeno estojo de carneira. Parecia-lhe
inconcebível que a Hespanha se agitasse tanto com o seu casamento. Disse ao pai:
- O meu coração, como já vos disse, não é conforme a este assunto e não posso
deixar de ser perfeitamente indiferente a ele. A guerra, neste caso, parece-me
afinal um daqueles remédios que apenas agravam o mal.
Afonso era um homem ainda jovem, de quarenta e poucos anos,
a quem o trono tinha reconfortado e até, sob certos aspectos, rejuvenescido.
Desde o seu encontro, doze anos antes, na Roca, com aquele estranho leão de
pêlo amarelo que Afonso parecia imitar o Sol. Sentava-se no trono como o Sol se
fixa no céu. E os que baixam os olhos é que podem suportar o Sol. Estava mais
louro, mais branco, mais luminoso. Raramente usava a coroa, mas irradiava um esplendor
íntimo que se prende mais com a situação interior dos homens, o seu estado de
plenitude e agrado, que se traduz em brilho, do que propriamente com os seus
ornamentos exteriores. O Sol é o esplendor da vulgaridade e os que cerram as
pálpebras não só suportam o Sol, como se libertam para o infinito. As trevas
são o silêncio sem referências, porque são, por excelência, o longe. E tudo é
paraíso ao longe. Num certo sentido, o crepúsculo de Afonso principiou nesse dia
de Maio, quando o Infante, cheio de luz ou de sombra, lhe virou as costas. Um
crepúsculo ainda radioso e que, com o fulgor próprio dos grandes poentes
estivais, não tardaria a iluminar toda a Península. Viver é arder, viver é
queimar a vida. Os homens não se distinguem das estrelas.
Recolheu-se o príncipe à Atouguia levando consigo, depois de
ter avistado Branca nos corredores do paço de Lisboa, o ânimo ainda mais
frio. E o frio cristaliza, é geométrico. Dir-se-ia que o infante se afastava
definitivamente para uma região polar e desconhecida, porque a adolescência é a
zona dos gelos. Só a morte os haveria de fundir. Deu o rei ordem, contrariado
que estava no seu esplendor de tarde, a Manuel Pessanha de ir, o mais
rapidamente possível, às costas andaluzes. Este Manuel Pessanha era
almirante do mar desde 1317, ano em
que tinha celebrado um contrato com o rei Dinis. Vinha de Génova, estava ligado
à família Pessagno, e tinha atrás de si séculos e séculos dum conhecimento
marítimo que, nos seus inícios, se devia prender à própria formação do comércio
na bacia do mediterrâneo. E verdade que Génova estava virada a Ocidente e que
os-seus marinheiros tinham um tipo de melancolia, que se diria já própria do
Atlântico. O Atlântico é como o céu, dá aos homens a confrontação nítida do
infinito. Mas nada disso lhes retirava o seu ancestral passado mediterrânico,
essa bacia de água morna onde todos os povos da Antiguidade lavaram os dedos
dos pés, que, no seu meio-termo, pode também fazer lembrar esses outros
marinheiros peninsulares, os catalães, os únicos que puderam depois competir
com os portugueses. Contra todas as previsões, a esquadra portuguesa foi
apanhada de imprevisto no Algarve pela esquadra castelhana e no próprio Cabo de
S. Vicente, onde teve lugar a mais importante batalha de mar destes distúrbios,
foram aprisionadas todas as naus portuguesas e capturado o seu Almirante, que
foi levado para Sevilha não como assaltante mas como prisioneiro. Era Julho e a
luz solar tinha, no seu esplendor, algo de crepuscular.
O último reino árabe que sobrevivia, ou que coexistia na
Península, era o de Granada. Compreendia toda a região que se estendia pela Serra
Nevada, um dos mais belos sítios do mundo, e constituía em si não tanto um
último reduto, mas um sentido natural da Península. Depois da dissolução do
império almóada, a Península voltou a encontrar uma nova e decisiva etapa do
seu contonalismo muçulmano. As taifas, e o que delas resta, são no princípio do
século XIII os novos reinos árabes da Península, dos quais irá sobreviver
depois, durante séculos, o de Granada. Mas o cantonalismo muçulmano, se se
caracteriza pela tolerância e pela liberdade religiosa, caracteriza-se também
pela debilidade da instituição militar que, pela sua hierarquia a hermetismo,
pode coexistir melhor com um poder autoritário». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro,
Publicações Europa-América, 1990.
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