«Mas, se a questão religiosa era o motivo principal das constantes
dissidências, que as armas só transitoriamente resolviam, mercê da força e nunca
pela razão, havia outras causas, quiçá mais importantes, ou mais estimulantes,
que as alimentavam, embora jamais fossem manifestadas nos primórdios do
reinado. Henrique de Guise, astucioso e ambicioso, sentia-se com um voraz
desejo de sacudir o seu homónimo do trono e ocupá-lo ele. Todos os seus
esforços, pois, se orientavam sub-repticiamente em tal sentido, manejando para
o efeito a força dos católicos fanáticos, que tudo sacrificavam a essa ideia.
A sua facção, constituída por numerosos elementos a rudo dispostos,
exaltada pelos acontecimentos, era excelente veículo para as intrigas
ambiciosas do chefe, o tortuoso Guise. Este desenvolve-se em actividade, não apenas
dentro do território nacional, mas, indo muito para além, procura apoios e
auxílios nos próprios meios estrangeiros. Consegue assim interessar nos seus
planos o astuto monarca da Espanha, Filipe II, à custa de compromissos que
afectariam o país no caso da sua vitória, recebendo em troca grandes somas de dinheiro.
Do mesmo modo, também o Papa o encoraja à acção, tendo em vista, sobretudo, o
extermínio das transviadas ovelhas que eram os Calvinistas. E só com o
incitamento do Sumo Pontífice, Gregório XIII, foi possível a formação da Liga,
associação criada para defender a ameaçada religião católica.
Em breve, esta organização atingia considerável poderio pelo número e
pela qualidade dos-adeptos reunidos à sua sombra. Mesmo até dos católicos
moderados da corrente do duque de Alençon, orientada pelo irmão e rei, foram
numerosos os elementos que se acolheram ao programa da Liga, desgostosos pela
falta de energia do soberano, que passava a vida rodeado dos favoritos e dos
seus cãezinhos de luxo. Para tão acentuada defecção também muito contribuiu a
drástica proclamação do duque de Guise, estabelecendo que todos os cidadãos
deveriam inscrever-se nela, sob pena de serem considerados inimigos. Ameaçava
com a excomunhão os que o não fizessem.
Convém frisar que os projectos de Henrique de Guise eram activamente
secundados por seu irmão, Luís de Lorena, arcebispo de Reims. A finalidade
ostensiva da Liga era a salvação do Catolicismo, pelo aniquilamento dos
adversários mais directamente ameaçadores, os Huguenotes ou Calvinistas.
Mas, aqui, transparecem já ou objectivos 'políticos da nova organização, que, desvelando
os seus propósitos, se propunha fazer abdicar o rei e encerrá-lo num mosteiro, em
face da sua tibieza de acção e da sua reconhecida falta de energia para satisfazer
os desejos dos Católicos intolerantes, dando a coroa ao seu activo e
esclarecido chefe, o duque de Guise.
Guise conquistara a posição de ídolo da população parisiense, à custa
da profusa distribuição de prospectos de propaganda, nos quais estigmatizava os
erros e a viciosa conduta íntima do rei e afirmava que, sendo descendente de
Carlos Magno, era a ele que competia ocupar o trono da França. Henrique III,
porém, revelou-se à altura das circunstâncias e, longe de perseguir a Liga,
como outro qualquer menos perspicaz sem dúvida teria feito, permitiu abertamente
a sua organização, sem a hostilizar.
Ao invés, a Liga não perdia o ensejo de atacar a
autoridade real, promovendo a indisciplina cívica e outros desacatos, sempre
inspirada pelo seu chefe. Henrique III, sem descurar a sua segurança própria,
vivia bem guardado por uma guarda pessoal de confiança, pronta a defendê-lo de
qualquer ataque». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria
Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
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