Causas aparentes da minha prisão
«Fixara eu a minha residência em Damão, cidade da Índia oriental
e possessão portuguesa, para descansar um pouco das fadigas que tivera nas
minhas viagens e reganhar as forças perdidas que me habilitassem a nelas
continuar; porém justamente aonde fora procurar o remanso, começaram-me novos
trabalhos, muito maiores dos que até então experimentara. A verdadeira causa
por que me tornei vítima de todas as perseguições dos ministros da Inquisição (maldita)
foi um ciúme mal cabido do governador de Damão. É, fácil de se calcular que
esta razão não foi alegada em parte alguma do meu processo, mas foi indubitável
que para se cevar a paixão daquele funcionário é que se procuraram vários pretextos
e se achou finalmente um, para me prenderem e afastarem para sempre da Índia, onde
porventura passaria os restantes dias da minha vida.
Cumpre aqui notar que embora fossem fraquíssimos os pretextos de que se
serviram os meus inimigos, na consideração das pessoas instruídas na fé e no
direito, todavia foram eles mais que suficientes para homens como os portugueses,
pelo motivo de suas máximas e prevenções; de sorte que por este lado eu mesmo
os achei tão plausíveis que só pude descobrir a verdadeira causa da minha
prisão no decurso do meu processo. A primeira ocasião que dei a meus
adversários, para me lançarem na Inquisição (maldita) e me botarem a perder,
foi uma conversa que tive com um religioso indígena, teólogo e dominicano; mas
antes de passar avante, devo mencionar neste lugar que se os meus costumes não
têm sido sempre conformes com a santidade da religião em que fui baptizado, tenho
contudo sido constante na fé dos meus pais, que é a da Igreja católica, apostólica,
romana, e por mercê de Deus tenho-me afeiçoado mais às doutrinas que nela se
recebem do que ordinariamente é a maior parte dos cristãos. Gostei pois sempre
de ouvir e de ler; e nada li com tanto aferro como a escritura do Novo e Velho
Testamento, cujo volume eu quase sempre levava comigo.
Tinha também aprendido alguma coisa da teologia escolástica, porque nas
longas viagens se topa continuamente com toda a espécie de gente, entre a qual
se acham pessoas de todas as religiões e seitas; e de mui boa vontade entrava
em argumentação com os hereges e cismáticos que encontrava nas mesmas viagens;
levava comigo livros apropriados para, isto, e entre outros um compêndio de
teologia, obra do padre Pedro de S. José, religioso de S. Bernardo, da ordem de
Cister, feuillant, [era da ordem de
Cister reformada, assim chamada do convento daquele nome, junto da cidade de
Toulouse de França, casa principal dessa congregação reformada] e tinha ganho
muito conhecimento pela leitura e práticas durante o longo ócio do mar, e da
assistência que fizera em várias partes da Índia; julgava-me pois habilitado a entrar
em conversações e mesmo em disputa com teólogos de profissão, e mui inocentemente
caí no laço que me armou esse religioso.
Havia tomado aposento nos dominicanos, cedendo às instâncias que eles
me fizeram, e vivia nessa congregação com a melhor harmonia e familiaridade,
fazendo-lhes em muitas ocasiões os obséquios possíveis, reconhecido à honra da boa
aceitação e amizade com que me trataram: entretínhamo-nos várias vezes em
conversas, e a que tive com o religioso, de quem acabo de falar, foi sobre os
efeitos do baptismo. Conviemos que a Igreja católica reconhece três espécies deste
sacramento, e não porque duvidasse mas como passatempo quis eu negar o efeito
do baptismo, que se chama flaminis, e
para sustentar a minha opinião aleguei a passagem que reza Nisi quis renatus fuerit ex aqua, et spiritu sancto, etc.
Mal tinha proferido esta sentença, que este bom
padre se ausentou, sem nada me responder sobre a minha instância, como se fora
levado por algum negócio urgente, e foi, segundo me parece, denunciar-me ao
comissário do Santo Ofício (maldito). Tornei a falar depois muitas vezes com este
religioso, e não achando nele nenhuma frieza no trato, estava bem longe de
pensar que me tivesse pregado uma tão má peça. Achara-me muitas vezes em
assembleias, onde trazem pequenas caixas de esmolas nas quais está pintada a
imagem da Santa Virgem ou a de algum santo. Os portugueses costumam beijar a
imagem pintada nestas caixas, onde os devotos dessas confrarias deitam os seus
óbolos, querendo; mas não podem dispensar-se de beijar as imagens sem escândalo
dos assistentes». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687,
Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel
Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN
972-608-075-4.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT