Prólogo
«Tenho pensado sempre que das coisas comuns que unem Portugal e a Galiza,
e o mar é a mais intensa, quando não a mais importante. A nossa maneira
semelhante de ver o mundo é determinada por essa comunidade, criadora de
emoções idênticas, desse modo particular de ser que chamamos atlantismo,
feito em parte de uma experiência física, em parte de uma experiência
histórica, em parte de una consciência de mistério. O conto da Sereia está
baseado numa lenda muilo espalhada na costa galega, curiosamente recolhida pela
primeira vez por um magnate português, o conde de Barcelos, no seu Nobiliário.
Pertence a sua matéria ao mitológico menor, embora também ao misterioso ou,
pelo menos, inexplicável, Continua a haver lugares na Galiza onde se crê (ou se
receia) que os Marinho de olhos azuis
tenham de morrer (morrer, desaparecer?) no mar levados pela Sereia. Histórias
como esta resultam porém deslocadas do mundo de hoje. Creio, contudo, que os
países atlânticos conservam intacta a sensibilidade requerida para a
compreensão.
O Conto da Sereia
Esta história da Sereia não a escrevi antes por não ter encontrado a
maneira natural de resolver uma minúcia técnica, se bem que, verdade seja dita,
não recordo ter-me esforçado muito para achar a solução e até é provável que
esta dificuldade aparente não tenha passado de ser capa para outras de maior
entidade, a de acreditar minimamente no que se vai contar, condição necessária
(penso ou pensava) para tratar um tema com responsabilidade. O
conto da Sereia foi-me chegando aos retalhos, como muitos outros; quase
sempre pelo mesmo caminho familiar e o interesse sentido pelos que mo contavam,
e por aqueloutros mais de perto por ele afectados, nunca passou do meramente
humano, e só quando já tudo se tinha resolvido, e não digo esquecido, mas sim
pelo menos modificadas as minhas relações sentimentais com a história e com os
seus protagonistas, ocorreu-me pensar que bem me podia servir para matéria de
um relato; mas, entendamo-nos, de aqueles que se propõem de início como
incríveis, de aqueles em que ao piscar de olhos do autor respondem os leitores
advertidos com um piscar de olhos.
Nestas condições, quando a única coisa que justifica a narração é o
modo de ela estar contada, como podia eu iniciar a minha proposta com palavras
mais ou menos como estas: Olhe, meu amigo para que você compreenda o que lhe
vou contar, tenho que me referir antes, e fazer-lho saber, ao bastardo do rei Dinis
de Portugal, o rei poeta; ao conde de Barcelos, assim chamado, que uma vez
escreveu um nobiliário no qual se inclui a história escassamente verosímil do
longínquo progenitor dos Marinho. E esta história, meu amigo,
é nada menos do que a seguinte, quer você acredite quer não:
- por volta do ano mil, segundo a tradição ou certos cálculos, um cavaleiro desse nome Marinho caminhava à beira-mar, quando um inesperado escorregão ou qualquer outra causa o precipitou nas alterosas vagas, das quais não teria podido livrar-se, armado como ia e trôpego na natação (não na lide, naturalmente), se não estivesse casualmente à espreita por aqueles lugares a Sereia de Finisterra, a tão sinistramente reputada, que acudiu rápida ao socorro, e que tendo visto de perto o formoso rosto e o bem trabalhado corpo do desmaiado náufrago, concebeu por ele amores tão súbitos, que o levou para a sua caverna e com ele ficou por amante durante bastantes anos; e ali teria morrido o cavaleiro de pura velhice, se não fora porque os filhos havidos do vínculo conjugal, que eram quatro, embora excelentes em artes natatórias e piscatórias, tudo ignoravam da cavalaria e da espada, pelo que seu pai pediu à Sereia que o deixasse voltar para terra e levá-los consigo para lhes dar completa educação, ao que ela respondeu que sim, que estava bem, que os levasse e os fizesse cavaleiros, mas com o anúncio e compromisso de que, cada geração, ela levaria um descendente para as suas necessidades particulares, e este destino singular reconhecer-se-ia na cor azul dos olhos ou nas escamas de peixe que o destinado haveria de ter nas coxas. E sucedeu desde então que todos os Marinho da costa, azuis de olhos ou com escamas, desapareceram no mar.
In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O
Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.
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