quarta-feira, 10 de abril de 2013

O Conto da Sereia. Lenda dos Marinho. Gonzalo Ballester. «Olhe, meu amigo para que você compreenda o que lhe vou contar, tenho que me referir antes, e fazer-lho saber, ao bastardo do rei Dinis de Portugal, o rei poeta; ao conde de Barcelos, assim chamado…»

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Prólogo
«Tenho pensado sempre que das coisas comuns que unem Portugal e a Galiza, e o mar é a mais intensa, quando não a mais importante. A nossa maneira semelhante de ver o mundo é determinada por essa comunidade, criadora de emoções idênticas, desse modo particular de ser que chamamos atlantismo, feito em parte de uma experiência física, em parte de uma experiência histórica, em parte de una consciência de mistério. O conto da Sereia está baseado numa lenda muilo espalhada na costa galega, curiosamente recolhida pela primeira vez por um magnate português, o conde de Barcelos, no seu Nobiliário. Pertence a sua matéria ao mitológico menor, embora também ao misterioso ou, pelo menos, inexplicável, Continua a haver lugares na Galiza onde se crê (ou se receia) que os Marinho de olhos azuis tenham de morrer (morrer, desaparecer?) no mar levados pela Sereia. Histórias como esta resultam porém deslocadas do mundo de hoje. Creio, contudo, que os países atlânticos conservam intacta a sensibilidade requerida para a compreensão.

O Conto da Sereia
Esta história da Sereia não a escrevi antes por não ter encontrado a maneira natural de resolver uma minúcia técnica, se bem que, verdade seja dita, não recordo ter-me esforçado muito para achar a solução e até é provável que esta dificuldade aparente não tenha passado de ser capa para outras de maior entidade, a de acreditar minimamente no que se vai contar, condição necessária (penso ou pensava) para tratar um tema com responsabilidade. O conto da Sereia foi-me chegando aos retalhos, como muitos outros; quase sempre pelo mesmo caminho familiar e o interesse sentido pelos que mo contavam, e por aqueloutros mais de perto por ele afectados, nunca passou do meramente humano, e só quando já tudo se tinha resolvido, e não digo esquecido, mas sim pelo menos modificadas as minhas relações sentimentais com a história e com os seus protagonistas, ocorreu-me pensar que bem me podia servir para matéria de um relato; mas, entendamo-nos, de aqueles que se propõem de início como incríveis, de aqueles em que ao piscar de olhos do autor respondem os leitores advertidos com um piscar de olhos.
Nestas condições, quando a única coisa que justifica a narração é o modo de ela estar contada, como podia eu iniciar a minha proposta com palavras mais ou menos como estas: Olhe, meu amigo para que você compreenda o que lhe vou contar, tenho que me referir antes, e fazer-lho saber, ao bastardo do rei Dinis de Portugal, o rei poeta; ao conde de Barcelos, assim chamado, que uma vez escreveu um nobiliário no qual se inclui a história escassamente verosímil do longínquo progenitor dos Marinho. E esta história, meu amigo, é nada menos do que a seguinte, quer você acredite quer não:
  • por volta do ano mil, segundo a tradição ou certos cálculos, um cavaleiro desse nome Marinho caminhava à beira-mar, quando um inesperado escorregão ou qualquer outra causa o precipitou nas alterosas vagas, das quais não teria podido livrar-se, armado como ia e trôpego na natação (não na lide, naturalmente), se não estivesse casualmente à espreita por aqueles lugares a Sereia de Finisterra, a tão sinistramente reputada, que acudiu rápida ao socorro, e que tendo visto de perto o formoso rosto e o bem trabalhado corpo do desmaiado náufrago, concebeu por ele amores tão súbitos, que o levou para a sua caverna e com ele ficou por amante durante bastantes anos; e ali teria morrido o cavaleiro de pura velhice, se não fora porque os filhos havidos do vínculo conjugal, que eram quatro, embora excelentes em artes natatórias e piscatórias, tudo ignoravam da cavalaria e da espada, pelo que seu pai pediu à Sereia que o deixasse voltar para terra e levá-los consigo para lhes dar completa educação, ao que ela respondeu que sim, que estava bem, que os levasse e os fizesse cavaleiros, mas com o anúncio e compromisso de que, cada geração, ela levaria um descendente para as suas necessidades particulares, e este destino singular reconhecer-se-ia na cor azul dos olhos ou nas escamas de peixe que o destinado haveria de ter nas coxas. E sucedeu desde então que todos os Marinho da costa, azuis de olhos ou com escamas, desapareceram no mar.
In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.

Cortesia de Difel/JDACT