Cogito
«Talvez Astor diante de um espelho. De um espelho em amplexo. De um
espelho não, que raramente é queixume. Talvez Astor diante da água, não de um
rio, não de um mar, não de um precipício. A água de um sonho num enclave de caverna.
Diante da água não, embora transparente. A água aproxima, envolve, mas não é
ainda suficiente. Diante de um vidro. Talvez Astor diante de um vidro. Um vidro
qualquer, baptizado com o andar das coisas. Um vidro. Espelha. Distancia.
Aproxima. Liquefaz. Contraria. Um vidro. E depois? Astor filho? Sim, filho. Da
Revolução? Do Passado? Da Revolução e do Passado? Filho não. Neto. Filho, das
resultantes em desgaste e ele próprio desgaste em contemplação. Neto, portanto.
E isolado? Dentro ou fora da sua geração? Fora? Dentro? Fora e dentro? Fora e
dentro. Outras gerações possíveis? Sim. Possíveis, com asas espanejadas por
alturas do pensar. Nele? Ao pé dele? Não. Exteriores, como ele exterior em
relação a tudo, agente da contemplação, rara força a advir-lhe dos momentos. E
momentos? Momentos mesmo, cosidos nos segundos? Parar os relógios porque em
tempo parado? Sim, parados. Continuamente parados na ilusão do movimento. E
quem desfila? Crentes, devotos anónimos? Talvez de tudo um pouco. Guerreiros? Porquê
guerreiros? Porque os havia, porque há guerreiros sempre que há poder, ou nesga
de poder. Até poder? Até querer. E um Príncipe? Monarquia? A esmo? Um Príncipe
desejado em ventre de nevoeiro. Um Príncipe. E que mais? Que nós? Que vós? Sempre,
em cada passo, resoluto, sem máscara: o cogito. Lembrança.
Um gato cor de casca de amêndoa saltou o muro do quintal e procurou
nicho numa das árvores que o inverno não tosquiara. Astor seguiu-o de olhos
embutidos na veneziana corrida. O animal desapareceu, medido que foi o quintal numa
passagem, esgueirando-se na porta do laboratório, onde o pai de Astor, Agnelo,
trabalhava há três noites sem descanso. No percurso do olhar, Astor viu um
gerânio, esquadrinhou-o no vaso onde o não esperava. Agarrou de seguida a ideia
que trazia deitada num oco da cabeça, a incomodá-lo, desde o raiar do sol.
Pegou-lhe, tal se pega um objecto; entre o dedo polegar e o indicador da mão
esquerda notou, que não passava de uma tola superstição, muito provavelmente
passageira, e atirou com ela, ligeiro, sem se deter. Viu-a, agradado, dar duas
voltas no espaço, vacilar e estatelar-se suspirando no chão empedrado da
cozinha, lavada na véspera até à brancura do sal por Dulcineia. Astor não se molestou.
Agradava-lhe ausentar-se. Aos poucos, contudo, sentiu crescer-lhe uma humidade
amarga nas gengivas e, procurando de novo o gerânio para o olhar simplesmente,
lembrou-se. Nada tinha comido desde que se levantara. Não mais ligou ao
presságio incomodativo, saído com ele da cama como uma dor nos rins matinal,
parecendo indicar-lhe uma catástrofe próxima. Só muito tempo volvido, ao ler
uma página surda de um jornal, foi levado a associar aos factos a conjectura
vaga daquela manhã. Quando mais tarde leu aquele jornal, procurou os restos da
suposição transtornada no empedrado da cozinha. Mais não viu para além de uma
nebulosa em carne viva: a memoria.
Em Astor houve uma amarga volúpia, um estranho vómito inquieto ao ver
Dulcineia sair da cozinha. Dulcineia atravessou o salão tal seus pais a viram
ao nascer, se bem agora velha como um figo passadiço:
o ar forte das marés idosas
a lua que acirrava a descompostura,
entranhas paradas, confundidas,
o tremor do odio, orgasmo dos abandonados.
Dulcineia trajava uma nudez tão murcha a ponto de Astor sentir um
aperto na garganta, igual ao que sofria por beber vinho branco em doses
excessivas, imposição diária da mãe, à qual Astor obedecia contrafeito». In Alexandre
Honrado, O Príncipe Perdido, colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986,
ISBN 978-972-699-155-7.
Cortesia de Vega/JDACT