Cogito
«A mulher passou por ele sem o ver, assobiando, modificando os lábios
numa chaminé sem feitiços, desarrumada de pregas e rugas cascosas. Dulcineia procurou
alguma coisa debaixo do aparador do salão, móvel estranho e deslocado. Não
interrompendo um só instante o assobio, Dulcineia retirou das profundezas do
chão um par de pantufas bolorentas, onde dois olhos bordados, em cada uma
delas, sobressaíam. Calçou-as. Astor desviou o olhar, fintou as fitas da
veneziana e reparou no regresso do gato cor de casca de amêndoa, a abocanhar
uma ratazana cinzenta, pouco maior que um láparo, com os intestinos a arrastar
pela terra molhada de orvalho. Entretanto, Dulcineia trouxe o seu corpo de
crisálida até Astor, estendeu-lhe uma mão ossuda, onde se fundiam soluços e
agrados, sobre o ombro direito, e confundiu-o, à luz roxa da manhã mal
consolidada, com Estanislau Leote, seu único amor e possuidor em quase setenta
anos de infortúnios. Em segundos, Dulcineia reflectiu na enorme testa polida de
Astor uma tarde amena em que os impulsos se sobrepuseram a todos os caudais das
melhores razões arquitectadas.
Dulcineia sabia. Não há nada no afecto mais rápido que o olhar. E ela
sentiu os olhos de Estanislau Leote a percorrerem, a serem percorridos e
iluminados por estrelas da terra. Ele foi mais rápido a passar dos olhos às
mãos e contornou-a inteira, feito labareda num fardo de erva seca. Ela
transbordou o corpo. Não opôs resistência. Para quê resistir? Só somos
verdadeiros no indizível segredo do amor. Ele fazia como queria, azougado e
animal, sem um ruído, apenas aqueles olhos de cão a morderem, a dar-lhe
beliscões na coluna vertebral, arqueada, já sem pudor e ritmada ao som de um
violino embruxado, gemente nas trevas de tantos anos de ambição, de geniceu
azedo e sequioso. Ela não sabia, mas não levou tempo nem trabalho a compreender:
os gestos, os afagos, as vontades,
o botão que desponta no canteiro.
Os homens trazem ao nascer
despojos de prazer
no corpo inteiro.
Dulcineia soltou-se nele, endemoninhada, e cresceu, cresceu por se
sentir trepadeira num muro de carne e fantasia, ao calor mordente das paisagens
em dentes de canícula, por léguas em redor o sol incrustado no céu, ovo mal
estrelado embora apetitoso até tocar a náusea de deglutir.
Quando o vestido lhe caiu, trapo inútil, tombou também as suas crenças
de menina. Recebeu um recado de seiva nova pela boca, em toda a pele. Fechou de
seguida as pálpebras e esqueceu o garrote do céu abrasador. Do que se seguiu,
ficou-lhe sempre recalcada a satisfação do jogo proibido, que jogara forte, sem
a preocupação de resultado diferente do empate. Na esteira da partida de
Estanislau Leote fora-se a verdade. Dulcineia deitou cimento fresco nos pés do seu
instinto de fêmea e quedou-se naquela loucura seca de fruto a apodrecer sem
boca alguma. Apenas Dulcineia merecera o amor naquela casa, pensou Astor. Se é
que se pode chamar amor ao crucificar dos gestos na travessia de uma ponte de
marfim sem terminal». In Alexandre Honrado, O Príncipe Perdido,
colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986, ISBN 978-972-699-155-7.
Cortesia de Vega/JDACT