Teoria
das Cores
«Era
uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe
tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se
negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se
alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia
surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O
problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a
chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe
ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se
por esta ordem: peixe, vermelho, pintor, sendo o vermelho o nexo entre o peixe
e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um
abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao
meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua
fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica,
mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o
da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de
fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
Polícia
Le
petit monsieur Leclair falhou mais uma vez. Nesse dia, Dezembro, chovia, eu
fora à sede do partido comunista, recomendado pelo pequeno senhor Maurice
Leclair, e recebera uma carta para as forjas de Clabeck. Em Bruxelas o meu trabalho
era muito irregular. Só acidentalmente é que dispunha de algum dinheiro .Fazia
um pouco de tudo: cortava legumes na Sobela,
enfardava aparas de papel na Nouvelle
Maison Vermeiren ou ajudava Chez
Lemaire, uma friture. Não tinha os documentos em ordem. Não havia quem me
desse trabalho certo e suficientemente prolongado. Maurice pretendia meter-me
em Clabeck, nas forjas, trabalho violento, e que por aí fosse solicitada ao
ministério a carta de trabalho. Contava com a influência de alguém do partido
comunista. Eu divertia-me sobretudo quando pensava que M. Maurice era antigo
colaboracionista e não gozava de direitos civis e políticos.
A
Bélgica era um país confuso, cómico. Por exemplo: o maior amigo do meu protector,
um flamengo que amava e cerveja forte, pertencera à resistência. Eu desejava
trabalho, apenas isso. Também um pouco de calor. Pensava em raparigas com quem
pudesse dormir ou ir, nas noites de sábado, aos bares da Chaussée d'Anvers. Eu
tinha um quarto triste, sem aquecimento. Uma das janelas caía sobre a igreja e
o cemitério burguês de Laeken. A outra dava para umas luzes distantes. Sob uma
ponte próxima passavam comboios de mercadorias. Às vezes eu fazia com estes elementos
estrangeiros um lirismo vagabundo e inocente. Também me sentia entusiasmado com
a solidão. Encontrava-me fora dos quadros, vagueava pela cidade. Era já
perigosamente conhecido Au Nord,
perto da estação, onde as putas e os chuis eram mais que as mães. De vez em
quando perdia por ali uma tarde inteira, arranjava dinheiro para duas cervejas,
um pacote de batatas». In Herberto Helder, Os Passos em Volta,
Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.
Cortesia
de Assírio & Alvim/JDACT