Holanda
«Pensa furiosamente na tradição, e toda a sua memória está corrompida
por uma ardente e desordenada tristeza. O sangue é negro desde a raiz. Porque
ninguém sabe onde a corrupção completa a inocência. O quarto fica sobre uma
loja onde se vendem leites, natas, queijos, cremes. Tudo isso é gordo e branco.
Ele desce as escadas, pára em frente da leitaria. Que é isto? - pergunta. Refere-se
a Deus, devorador de natas. - Há, uma confusão qualquer - supõe. - Sou um
inocente. Afastem Deus daqui. Além disso, estou amaldiçoado. O coração já, não pode
mais. Entre os bichos e as plantas, acontece-lhe dizer: Que fertilidade! - E a
vida corrompe-se nos próprios fundamentos. Sente-se como um apóstolo sem fé.
Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das cidades.
Ou ser devorado pela inteligência, estiolar de excessiva lucidez no
meio da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o
nome, essa sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo
subtil que participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato. - Não
penso na minha alma - diria ele - nem na carne. Não me ponho a perguntar se
ganharei a salvação. Eu preciso de amor. Preciso aprender. Mas parece que na
comunidade já tudo se aprendera, estava tudo ensinado e sabido desde sempre. E
os homens pensavam unicamente em preservar-se do sofrimento; desejavam que a
linguagem ficasse intacta, sem mácula.
Ele olhava o sol verde entre as patas das vacas e supunha poder
envenenar-se legando o cadáver à confusão holandesa. E como se alimentaria essa
confusão, como seria divertido o pequeno quadro holandês! - Senhor, que lhe
aconteceu? Salva-lhe a alma se puderes. Ele era um estrangeiro: envenenou-se.
Nada mais sabemos. Que mal te fez a Holanda para a castigares assim?
Muito lentamente, o seu amor desenvolveu-se. Era um amor que se
aprendia a si próprio, cheio de medo e dúvida. - O nosso amor pode atingir
tudo? - perguntava. Ou perguntava então: - Até onde vão os direitos de um homem?
Ou de um poeta? Na Holanda não se fazem fogueiras ao ar livre: nada se percebe
do fogo. A Holanda é um país cada vez maior. O mar rouba lhe meio metro, e logo
os holandeses roubam dois metros de terra ao seio fervente das águas. - Não compreendo
a justiça cósmica. E murmura para si: Nada conhecem das coisas do fogo. Os
dons, mais profundos do homem estiolam dentro deles. Deverei amá-los? - Amar o
quê, quem? - pergunta a visita. - Referes-te aos homens holandeses ou aos dons
que esqueceram? E ele não sabe realmente aquilo a que desejava referir-se, o
que lhe inspirava o desespero. Sentado na Holanda, pensa: - Piedade. Para ele?
Para os homens holandeses? Em que jogos se enreda uma inocência!» In
Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, ISBN
978-972-37-0119-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT