terça-feira, 9 de abril de 2013

Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Grande Prémio APE 1995. Mário de Carvalho. «Não tenho outra razão para isso, senão entreter brandamente o meu tédio, que ainda mais se avantajaria naqueloutros portes de caçador ou arroteador de solos ou edificador de pedras…»

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«Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno longe, como ser feliz? Mara, mais além, borda, sentada numa cadeira alta de vime, junto aos degraus da porta. Há pouco, ralhava com as escravas. Agora ri-se com as escravas. Em breve ralhará com as escravas. Do local em que me encontro não consigo ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos risos e dos ralhos.
É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe tão bem, desde há tantos anos, os trejeitos e os modos. Momentos atrás, sem nenhuma razão especial, veio até junto de mim, com o seu animal de regaço que é agora um gato cinzento, depois de, em hora nefasta, ter perdido a rola, muito alva, que lhe vinha comer à mão. Este bizarro animal, que dizem de origem egípcia, é uma espécie de pantera em miniatura que conserva todos os rompantes da fera e que, como ela, se compraz na crueldade e no rasgo imprevisto. Ora se relaxa, pacificado, em languidez esparramada, num convite ao sossego universal, ora salta de garras prestes, orelhas derribadas, pêlo tufado, colmilhos em ameaça.
Não responde pelo nome e, apesar da sua pequenez, põe em respeito os cães de guarda quando os enfrenta. Foi um mercador que o deixou aí, como reconhecimento pelas compras avultadas, porventura excessivas, a que Mara se prestou. Eu confesso que encaro este animal estrangeiro com alguma desconfiança. Ainda não faz parte da casa, nem sei se algum dia fará… Mara admira-se de eu estar às voltas com a Tyrrenika, infindável anedotário etrusco do imperador Cláudio. Que proveito me trará o esforço, pergunta, se temos tão raros convidados a quem deslumbrar? Num gesto faceto, desdobra um dos rolos, soletra umas palavras ao acaso, ri e deixa-o rebolar pelo tampo da mesa. Logo as unhas afiadas do gato ressaltam, aduncas, e se preparam para grifar o papiro, como já tinham antes marcado os braços de Mara. Protesta. Mara aconchega o bicho ao colo e deixa-me, numa pequena corrida. Rito quotidiano, conhecido, trivial e amável. Mara, aprazível, afirmando-me a sua solicitude...
Preserva Mara uma vivacidade juvenil que ainda me espanta, ao fim de todos estes anos. Nunca teve paciência para desenrolar um livro; boceja e adormece quando chamo um escravo para ler algum trecho, mesmo solerte e ligeiro. Aborrece-se nesta pasmada villa, mas nunca admitiria que se aborrece. Não lhe ocorre queixar-se. Onde Gaio está, Gaia estará. Assim foi educada. Sob aquela futilidade alegre e volátil, velam solidíssimos princípios, ancestrais, e uma recôndita lucidez que só se expõe quando motivos ponderosos a convocam. Sempre contei com a estrénua lealdade de Mara, embora ela não saiba definir o vocábulo lealdade, nem dissertar sobre ele, nem use nunca o termo estrénuo.
Em boa verdade, os Etruscos de Cláudio interessam-me de somenos e a prosa dele flui tão entaramelada como dizem lhe saía a fala. Mas vou lendo, folha a folha, passo a passo, com uma aplicação de discípulo em tormentos de trabalho marcado e férula à espreita. Não tenho outra razão para isso, senão entreter brandamente o meu tédio, que ainda mais se avantajaria naqueloutros portes de caçador ou arroteador de solos ou edificador de pedras, ou diligente administrador de agros, ou praticante de qualquer actividade própria à minha condição... Começada um dia a leitura, impõe-se-me levá-la até ao fim. Assim me educaram e nessa pertinência me reconheço. Propus-me um livro? Há que lê-lo!» In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.

Cortesia de Caminho/JDACT