«(…) Pela perspectiva
filosófica a os limites e alcances do conhecimento o mundo mediante à palavra e
a consciência, através das quais o ser humano se distingue dos outros seres
pela perspectiva social, investiga os impasses criados pela separação dos indivíduos
em diferentes grupos, dando destaque à inserção do escritor e do nordestino na
sociedade brasileira; pela perspectiva estética, sonda o gesto criador e o
trabalho na busca da expressão que inaugure uma apreensão original do real. Os
três aspectos, é claro, apresentam-se de forma imbricada no livro. Pelo ângulo
filosófico, a evidência de que as origens do ser se perdem no tempo e de que é
impossível voltar à época em que as coisas acontecem antes de acontecer,
leva o indivíduo a um estado de perplexidade. Ao afirmar que Tudo
no mundo começou com um sim, o narrador revela que sabe que as coisas se
criam por um acto de vontade e de afirmação.
Sabe, portanto, do modo
pelo qual algo passa a existir. A compreensão deste algo, no entanto, esbarra naquilo
que o antecedeu e que possibilitou a expressão de uma vontade, possibilitou
haver o não e o sim, para que, então, a escolha se fizesse. Mais importante do que
o modo pelo qual algo que não existia ganha existência, há o problema
fundamental da origem, do começo de tudo, que se situa em uma ordem temporal
inapreensível pelo homem: Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o
universo jamais começou. Assim, a pessoa se faz intermináveis perguntas
e vive uma série de faltas. A única verdade
indiscutível são as existências individuais. Intui, por certo, a identificação
de todos em uma unidade Todos nós somos
um, mas a unificação se mostra principalmente pela carência e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar
coisa mais preciosa que ouro, existe a quem falte o delicado essencial.
Fica apenas a constatação de que cada ser é um fragmento ou parte de algo. Daí
projectar-se, como sentido último da realidade, a realidade que sempre está
faltando.
Mais dolorosamente
ainda, existe a consciência de cada um, advertindo sobre este vazio, e o
empenho em transpô-lo. A consciência aflora como atributo humano paradoxal: dá
instrumentos para se tentar responder a essas indagações, possibilita que se
busque o sentido da vida e também desponta como fonte de dúvidas, assinalando a
ruptura de cada ser individual com um modo de existência originário, em que
tudo era um todo cheio de harmonia. A consciência é condição de liberdade e,
simultaneamente, aprisionamento. Esta nostalgia de uma integração total com o
Cosmos confere uma certa tragicidade ao projecto do narrador. Pois ao mesmo
tempo em que sabe que é um ser independente e gosta de sê-lo, anseia por uma identificação
completa com o outro, por uma comunicação directa, sem obstáculos, o que acabaria
anulando a sua individualidade, a sua autonomia.
A vivência de culpa,
como se houvesse um erro fundamental a ser sanado, desponta desde o primeiro subtítulo
do livro A culpa é minha e sempre retorna. É ela um dos sintomas deste
desgarramento do homem no mundo que, vendo cerradas as portas de acesso à unidade
originária, vai investigar, solitário, a dinâmica de sua existência individual.
A escolha de Macabéa, anónima, incompetente
para a vida, integra essa determinação, que inclui a busca de regressão ao inumano
Não
se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira,
respira, respira e a expiação de uma possível culpa.
O narrador, perpassado
por toda sorte de indagações sobre o ser e o existir, atormentado pela
incompletude e pela dualidade da natureza humana para as quais as respostas são
precárias, converte a busca em sua única certeza. Daí decorrem pelo menos dois
movimentos centrais da narrativa. Primeiro, como toda busca e toda
pergunta são busca de algo e pergunta para alguém, o narrador, para saber, tem de desdobrar-se, tem de dialogar.
Aquilo que, em uma situação comunicativa banal, passa despercebido projecta-se
para o narrador como condição essencial do ser: apreender a si mesmo inclui o confronto com o outro. Ao
mesmo tempo, essa projecção traz implícito o retorno para si mesmo, quando se
tenta unificar em um único sujeito individual os elementos que estão presentes
nos outros seres do Universo». In Clarice
Lispector, A Hora da Estrela, Editora Francisco Alves, correção de
Doralice, CDD - 869.93, CDU 869.0(81)-3.
Cortesia de Editora F.
Alves/JDACT