Crónica de uma difamação
anunciada
Uma criança de peito
«Esta lista permite saber que a ama da infanta Catarina teve, a certa
altura, uma criada muçulmana. Na época em que a infanta Joana veio ao
mundo, os documentos de chancelaria registam, certamente, a presença em redor
da rainha de vários judeus pertencentes à linhagem dos Yahia ou Negro, uma das mais antigas da
Península Ibérica, à qual talvez tivesse pertencido o primeiro rabino de
Portugal, no século XII, e da qual saíra, com certeza, um famoso físico do rei
Duarte. Também o médico de D. Leonor era judeu, assim como dois dos seus
alfaiates e um dos seus administradores. É possível que o número de servidores
de origem hebraica da casa da rainha fosse bastante maior do que indicam os documentos.
NOTA: Perdão real
de açoites e prisão a uma mulher moura da ama da infanta D. Catarina, que fora
detida por não levar o sinal obrigatório para os muçulmanos. Chancelaria de D.
Afonso V. A 13 de Maio de 1015, Xab
Xaia, rico proprietário e mercador sefardita, provavelmente originário
de Córdova, foi desapossado em Leão pelo rei Alfonso V de Leão e Castela de
algumas propriedades. É possível que fosse ascendente do primeiro arrabi-mor de Portugal, Yahia-ben-Yaish
(morte em 1220), dono da Aldeia dos Negros, cerca do tradicional domínio das
rainhas consortes de Portugal, Óbidos. Provável descendente deste, mestre
Guedelha ibn Yahia ben Salomon (n. 1400 ca.), físico e astrólogo do monarca Duarte,
cujo conselho de que a sua entronização se procedesse a determinada hora este
rei não seguira em 1433, segundo conta Pina. O contrário se fez, segundo
a crónica, no caso da subida ao trono do seu filho, o pequeno D. Afonso, por
ordem taxativa do infante Pedro de seguir as instruções do médico hebreu. Também
o médico de D. Leonor, Judas Benziza, era judeu, assim como dois dos seus alfaiates,
Abraão e Isaque Beirão, e um dos seus administradores, Abraão Amigo. Entre os
vários assentos relacionados com os Negro,
cabem citar-se os seguintes. A 15 de Março concedeu-se a Davy Negro, residente
em Lisboa, o privilégio de ser nomeado procurador dos judeus e dos cristãos que o quiserem, isto apesar de,
desde o Concílio de Latrão de 1215, os judeus não poderem representar os
cristãos nos julgamentos. No dia 29 de Março, isto é, um dia antes da suposta
data de nascimento de Juana, outro David, filho de Davy Negro, ou o próprio,
recebia o privilégio de ser nomeado procurador perante o juiz das sisas, de Lisboa. Sendo vários os judeus de
Évora que por esses dias receberam, muito provavelmente, familiares dos Negro. Monumenta Henricina,Coimbra.
Seguindo o costume vigente nas casas reais da península, a infanta
Joana terá sido baptizada poucos dias depois de nascer, numa cerimónia
celebrada pelo arcebispo de Lisboa, Pedro de Noronha; acto do qual não se
guardaria registo pelo simples facto de ela não ser a herdeira da coroa. Os
seus padrinhos terão sido importantes nobres cortesãos e, possivelmente, algum
dos seus irmãos ou irmãs. Quanto ao nome que recebeu, apesar de o ostentar a
primeira rainha da dinastia Trastâmara, à qual pertencia D. Leonor, não era
comum nas mulheres das casas reais de Portugal e de Castela. É possível,
portanto, que lhe tenha sido dado em memória do seu avô paterno, João I,
possivelmente com a intenção de a rainha se harmonizar com os lisboetas, que
sentiam verdadeira admiração por esse rei e que a tinham em muito má
consideração. Ou talvez a rainha o tenha escolhido por devoção a uma jovem que
nessa época despertava a admiração de muitas mulheres cristãs pertencentes a
todos os estratos sociais: Joana d'Arc, a
donzela de Orleães, uma rapariga que oito anos antes do nascimento da
infanta Joana fora condenada à morte na fogueira, em parte porque, para os
homens dessa época, era intolerável que uma mulher se dedicasse a algo tão
pouco feminino como a guerra sobretudo sendo de origem camponesa. Uma jovem que
uma tia portuguesa da infanta Joana visitara na prisão,
estando grávida, para lhe pedir que rezasse pelo filho que esperava.
NOTA: A infanta Isabel de Portugal (1397-1471), filha do rei
João I e de D. Filipa de Lencastre, mulher do duque Filipe de Borgonha, que
visitara a futura santa no castelo de Beaulieu, onde a encerrara o seu marido.
A duquesa, então grávida de cinco meses, levava no seu ventre, já formado,
aquele que viria a ser Carlos o Temerário… Desde esse encontro pode seguir-se a
pista ténue mas persistente de uma rede de simpatias e quase de cumplicidades
que algumas nobres senhoras tecem em torno de Juana. Essa rede parece passar
por Isabel, através daquele fugaz encontro. Fora, provavelmente, o retrato de
Isabel, pintado por Jan van Eyck entre Janeiro e Fevereiro de 1429, durante a
sua estada em Portugal para tratar do seu casamento, que convencera
definitivamente a casar-se com ela um homem muito amante da beleza, sobretudo
das mulheres, ao qual se atribuem cerca de cento e trinta filhos bastardos.
Certamente, esse retrato também serviria de inspiração ao mesmo artista e ao seu
irmão Hubert para representar, em 1432,a Sibila de Cumas, no retábulo do
Cordeiro Místico da catedral de Saint Bavo, em Gand. Assim parecem prová-lo as
grandes semelhanças entre o mesmo e o que aparece num desenho do século XVII,
única cópia sobrevivente do retrato da infanta feito por Jan, e sobretudo a
legenda por baixo do mesmo Cest la
pourtraiture qui fu envoiié a phe duc de bourgoingne & de brabant de dame
ysabel fille de roy Jehan de portugal & datgarbe seigneur de septe par luy
conquise qui fu depuis feme & espeuse du desus dit duc phe. Devido à
confirmada beleza da infanta Isabel de Portugal, duquesa de Borgonha, esta
imagem foi escolhida para capa da biografia de uma mulher cuja formosura,
também confirmada pelas fontes, possivelmente se assemelhava à da sua tia
carnal.
Antes do final do mês de Abril de 1439,
ainda não tinha Joana um mês de
vida, teve lugar em Tudela, no reino de Navarra, uma reunião que condicionaria
a sua vida nos oito anos seguintes. No encontro, os infantes de Aragão, irmãos
da sua mãe, concordaram em aplicar uma estratégia para acabar politicamente com
Álvaro de Luna, o valido aragonês que dirigia o reino de Castela havia
quase trinta anos, graças à enorme influência que exercia sobre o rei de
Castela, marido da única irmã de D. Leonor. A partir desse momento, a rainha
viúva de Portugal começou a considerar seriamente a possibilidade de pedir
ajuda militar aos irmãos para fazer frente às pressões dos cunhados
portugueses. Poucos dias depois daquele acordo, a pedido do cunhado Pedro,
Afonso V assinou a nomeação para cargos de alta responsabilidade de dois nobres
muito próximos do seu tio, cujas filhas e sobrinhas fariam parte, quinze anos mais
tarde, da casa da rainha Joana em Castela». In A Rainha Adúltera, Joana de
Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada,
Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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