«(…) Como o antigo mundo de Aristóteles, o que chamamos cultura, tem
horror do vazio. A configuração trágica
da obra e da vida de Antero, a primeira entre nós que assumiu
esse perfil, é odiosa a gregos e troianos. Como todas as outras que no seu
rasto conservam a dedada da aventura
anteriana e que só um ludismo
menos transcendental que o do autor dos Sonetos salvou do mesmo processo de
ocultação sublimada: a de Pessoa, de Sá-Carneiro, de Raul
Brandão, de Régio, de Casais Monteiro, entre outras. A nossa
cultura, tradicionalmente contemplativa e ontologicamente feliz, suporta mal um
desmentido à sua mitologia como o representado por Antero. Amigos e
inimigos, à esquerda e à direita, com raras excepções, uma delas é a de Sant'Ana
Dionísio na peugada de Leonardo Coimbra, preferiram dissolver o trágico
anteriano na patologia, no temperamento, mera desventura do corpo doente que em
nada afectaria a autónoma liberdade com que soube descortinar sob o sem sentido
da vida uma harmonia de outra ordem. Que a desejou, que na sua busca implicou
os mais altos dotes do seu espírito, não pode ser contestado. Mas que a não encontrou
e que com igual intensidade assumiu o pensamento da sua ausência, a
ideia da Vida como ilusão universal, menos contestado pode ser ainda. A
sua canonização não pode velar
a anti-Mensagem (ao menos na leitura
perversa que se costuma fazer de Pessoa) da obra de Antero.
Ela é uma pedra negra no caminho de
rosas com que atapetamos a nossa sensível alma lusitana. É por isso que todos os nossos
césares da cultura e da vida passam cautelosa ou iradamente ao lado.
Antero e a Filosofia
Os sistemas caem: os cultos desfazem-se: só os poemas parecem cada vez
mais jovens e mais belos. In Prosas
No tempo filosófico que é o nosso, mais atento à impotência da
linguagem que ao seu original poder encantatório, que estatuto podemos reservar
a um texto como o das Tendências,
onde todos os ecos espiritualistas e éticos da filosofia moderna, de Letbnrz
a Kant, de Fichte a Ravaisson se misturam, numa espécie de remake de um sermão de Bossuet
ecoando num templo vazio? O próprio Antero,
nas páginas de comentário àquilo que ele julga ser a tendência metafísica dos tempos futuros, duvida que esse tipo de
considerações releve da síntese filosófica que dele se esperava:
- Dir-me-ão agora alguns, e não dos somenos, que essa pretendida síntese não passa, afinal, duma certa unidade de vistas gerais e uma conformidade de tendências, que pode, sem dúvida, acentuar-se ainda mais e ampliar progressivamente o terreno neutro ou comum onde se encontram irmãs as doutrinais rivais, mas não chegará nunca a constituir uma verdadeira unificação sistemática, o símbolo uniforme e completo do pensamento moderno.
Vale a pena ler o resto do parágrafo e mesmo as últimas páginas de
autojustificação de Antero. Elas antecipam já o essencial das reticências futuras a
respeito do valor do seu
pensamento e até do seu carácter filosófico,
ao mesmo tempo que lhe propiciam a ocasião para fazer o elogio do pensamento não sistemático, aberto, onde
a diversidade ecoe, contrariamente ao que seria próprio de uma igreja. Uma
síntese filosófica, escreve, não é um símbolo teológico.
Provavelmente, Antero tinha consciência de que esta defesa deslocava a questão
do seu lugar exacto. O sentimento agudo, e, sem dúvida, crucificante, das suas
carências, naquele domínio que mais do que nenhum lhe importava, acompanhou-o sempre.
Porventura, não será excessivo imaginar que tal sentimento se encontra no âmago
da sua tragédia como tragédia
não-filosófica, mas banalmente humana. A esfinge aos pés de quem
sucumbiu não foi outra que a Filosofia mesma. Em todo o caso, o
ídolo que para ele se tornou». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite
Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.
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