«(…) Seria fácil mas absurdo, ironizar evocando este sonho sergista. O que nesse texto
de utopia datada não deve surpreender. Só o evoco para mostrar como 40 anos depois
este quixotismo na tradição da utopia
socialista e do utopismo que nela deverá sempre existir para merecer esse
título, nos é interdito. Nos é
interdito sob a forma sergista. O futuro não confirmou a visão optimista
de Sérgio.
Sob todas as suas formas, mas sobretudo aquela que se cifrava na ideia de colectivização, esse futuro foi o da dificuldade,
aparentemente insanável, de a levar a cabo como imperativo socialista sem destruir aquilo que no Socialismo é exigência de
liberdade concreta, colectiva sem dúvida, mas de um colectivismo de indivíduos, que era aliás o que Sérgio
imaginara.
Não: não era fácil atravessar, como Alice, os muros da
realidade capitalista moderna, mesmo da nossa tão fraca. O capitalismo,
encontrando uma capacidade de renovação e de sedução, hipótese impensável para a
geração de Sérgio, deu origem a um discurso de justificação refinada, sem
complexos, de sua própria prática enquanto prática
liberal, como se Monsieur Guizot em pessoa tivesse encarnado não só nos
Friedman e nos Hayek que o representam ou nos yuppies que dele vivem. É o discurso implícito de uma prática económica do homem da rua
ocidental que joga na bolsa como se fosse um émulo de Rotschild. Inacreditável
evolução ou revolução, com
aspas ou sem elas, de uma sociedade capitalista que vive em tempo real a
euforia da sua produtividade e, quando calha, a sua disforia, quando de súbito
a grande máquina capitalista já sem capitalista
dentro, se autodesregulariza.
Que o preço deste sucesso por conta dos microprocessadores seja, como
na antiga alegoria de Petrarca, Il Trionfo della Morte, um chão
juncado de desempregados, zonas inteiramente sinistradas por obsolescências
de ponta, que uma parte dos próprios actores-robôs desse universo perto do qual
o de Dallas é uma Disneylândia, não obsta a que impere e se glorifique
como puro produto da fatalidade dos
deuses do progresso essa visão
liberal conforme, ela também, ao sentido da
História. Só que agora esse sentido
da História, se conjuga bem com o seu oposto, com uma epistemologia do caos,
do caos como expressão original da liberdade... O que permite a uma grande
parte da intelligentsia do Ocidente sintonizar
hoje com aquilo que há cinquenta anos lhe causaria horror. Tal é o nosso presente, ou a parte mais visível
da sua máquina de produção em segundo e terceiro graus, e por ser como é impõe
à cultura do Socialismo ou mesmo ao Socialismo como cultura uma exigência de
quixotismo para imaginar uma contra-resposta adequada e um futuro bem mais audacioso e comportando maiores riscos que no tempo
de A.
Sérgio. Mas não haverá futuro,
em todo o caso, futuro que seja modelado por uma visão e uma intenção que
mereça chamar-se socialista, sem que,
concretamente, se encontre uma
resposta no discurso para pensar este
mundo, este tipo de existência ultracapitalista cujo modelo, efeitos e
ressonância afectam hoje o planeta inteiro. E o ultrapassam, até porque jamais
o homem, sob esta forma, esteve mais investido no futuro do que nós, actuais colonizadores de galáxias.
A grande tentação, que na prática tem milhares de seguidores, é a de
ficar fascinado por este sucesso objectivo, por esta estrutura aparentemente
conforme à vontade de renovação e de poderio que lhe é conatural e imaginar
para o socialismo um futuro de mero
eco moral sempre em atraso, numa lamentação piedosa diante de catástrofes
económicas ou sociais que são postas na conta do progresso como nos melhores dias do século XIX. Outra é a de
encontrar um espaço dentro do mesmo universo, uma adaptação a ele que lhe
modere o ritmo e a finalidade implacáveis, em suma, que o humanize». In
Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, Ensaios
Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.
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