sexta-feira, 24 de maio de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «Quase todas as naus da Europa que passam para além do cabo da Boa Esperança ali param, por mor de se restaurarem e colherem água e lenha. O porto é grande, porém pouco seguro, e poucos são os ventos a que alguém se não veja exposto»

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«(…) Então um destes diante de quem eu falava tomou a palavra e disse-me que, falando genericamente era exacto o que eu afirmara; mas que em fim cumpria fazer esta distinção, que se em França não havia verdadeira justiça, tinham eles os portugueses esta vantagem sobre nós, porque tinham no seu seio um tribunal cujas sentenças eram tão justas e tão infalíveis como as de Jesus Cristo. Conhecendo eu logo que aludia à Inquisição (maldita), repliquei-lhe nestes termos: - Acaso pensais vós que os inquisidores são menos homens e menos escravos das suas paixões que os outros juízes? - Não digais tal, me replicou este zeloso defensor do Santo Ofício (maldito). Se os inquisidores, juntos em tribunal, são infalíveis, é porque o Espírito Santo preside sempre às suas decisões.
Eu não pude levar à paciência por mais tempo um discurso que me parecia tão desatinado, e para lhe provar que os inquisidores nada menos eram do que eu lhe dizia, relatei a aventura do padre Efraim de Nevers, capuchinho francês e missionário apostólico nas Índias, o qual, segundo refere La Boulaye Le Gou na descrição das suas viagens, foi preso na Inquisição (maldita) por efeito de surpresa e ciúme, há 17 anos, com pouca diferença, e onde fora muito maltratado durante o tempo da sua prisão, e concluí dizendo-lhe que eu nada duvidava que este religioso fosse mais virtuoso e mais ilustrado que os que assim o tinham feito jazer em um estreito cárcere, sem ao menos lhe permitirem rezar no seu breviário; acrescentei que eu dava por feliz a França por não ter querido admitir no seu seio este tribunal de severidade e que igualmente me reputava venturoso por não estar sujeito à sua jurisdição.
Este meu colóquio não deixou de ser fielmente transmitido ao padre comissário, e isto junto ao mais que eu já antes disse, serviu com o tempo de base para o processo que contra mim se fez instaurar.

Sucinta descrição de Cabo Verde, do cabo da Boa Esperança e da ilha Bourbon
Não sendo embora tenção minha fazer exacta relação das minhas jornadas, nem tampouco descrever todos os países por onde fui passando antes de aportar a Damão, e sendo meu propósito primeiro o de informar o público sobre quanto se passa na Inquisição (maldita), senti-me ainda assim na obrigação, para satisfazer os que lerem esta obra, de narrar sucintamente aquilo que de mais assinalável vi nesses lugares onde estacionei antes ou depois de ser posto na cadeia. Partira eu de França nas naus da Companhia das Índias, resolvido a satisfazer arrebatada paixão de viajar, que desde há muito tinha. Tendo nós visto algumas das ilhas Canárias, ou Afortunadas, que os espanhóis ocupam, lançámos âncora no Cabo Verde. Está este lugar de África situado sob o 14.º grau de latitude setentrional, e não será custoso acreditar que nesta elevação nunca o Verão tem fim, sendo o frio coisa desconhecida. Quase todas as naus da Europa que passam para além do cabo da Boa Esperança ali param, por mor de se restaurarem e colherem água e lenha; o porto é grande, porém pouco seguro, e poucos são os ventos a que alguém se não veja exposto; o ar é muito são, as terras férteis, o mar destas costas mui piscoso, e assim os rios; a caça é abundante, os povos são negros e […]; há por la bois e carneiros, fruta de muita espécie, como limões, laranjas doces e amargas, ananases e bananas; o sustento geral dos habitantes é o milho miúdo, cultivam arroz e trigo, mas em parca quantidade; professam a fé, de um maometismo corrompido, e entre as suas cerimónias muitas são aquelas que o Corão nem menciona. Neste lugar nos quedámos só o tempo preciso para nos provermos das coisas de que necessitávamos e ali pudemos ter.
Dali partidos, continuámos a nossa jornada e tivemos venturosa viagem até ao cabo da Boa Esperança, não porém sem sofrermos de quando em vez algumas tempestades e também certas calmarias, que cuido serem mais insuportáveis, e ainda mais trabalhosas, que muitas furiosas tormentas. Quando nos faltava o vento, dedicávamo-nos à pesca do tubarão; mais útil que deleitosa era a pesca dos bonitos, quando avançávamos, e embora nos víssemos com abundância providos de toda a sorte de viandas, este peixe nos parecia, e de facto era, mui deleitoso refrigério». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT