Volta à terra que te viu nascer
«(…) Por sua vez, o enviado do rei de Portugal, Diogo de Bairros, adail-mor do rei, homem da sua inteira
confiança e grande conhecedor do terreno e do quotidiano marroquinos, investido
de todos os poderes necessários para levar por diante a missão, tinha feito os
contactos fundamentais para tornar úteis as condições que os portugueses
dispunham no Magrebe em 1472.
Desta vez, Afonso V conseguiu juntar o capital suficiente para fazer regressar
ao reino a encomenda que há tanto tempo, incompreensivelmente, tinha saído e
não voltara.
Em Ceuta, os portugueses mantinham reféns o filho e as mulheres do Mollexeque
da vencida praça de Arzila, um bem ao qual o mouro dava o maior valor
criando assim boas condições para o monarca português poder negociar em posição
de superioridade. O negócio consistia em trocar seres humanos vivos por restos,
mas, dentro de uma política de olho por
olho, dente por dente, a intenção era justa e resultava eficaz. Esta cidade
tinha sido a primeira praça conquistada no Norte de África, em 1415, reinava em Portugal João I, avô
de Afonso V tendo atrás de si uma longa história de resistência aos magrebinos.
O que pretendia fazer o Africano
português com os familiares do Mollexeque de Arzila cativos? Quando o rei tomou conhecimento do valor
político dos capturados, o seu pensamento não mais deixou de estar ocupado com
a oportunidade que se abria de, finalmente, recuperar a relíquia há muitos anos
inanimada em Fez.
Contudo, levantavam-se outras questões que o deixavam inquieto:
- Seriam os filhos e as mulheres do Mollexe que suficientes para executar a permuta? Seria desta vez que os mouros negociavam com tolerância o que restava do objecto precioso há tanto tempo desprezado, questões a que o rei podia por fim responder sem se enganar.
Sentindo-se possuído pelo sonho dos grandes feitos passados contra os
infiéis, Afonso V fez das cidades marroquinas viradas para a Europa um palco de
guerra sem quartel, tudo por culpa da malograda tentativa de 1437 para conquistar Tânger, evento que
deixou marcas profundas no moral do reino, mas agora o rei podia reivindicar
compensação. Belfagege ainda terá oferecido a Afonso pelo resgate dos seus familiares
uma quantidade de ouro difícil de ignorar, mas o monarca vitorioso rejeitou-a,
por inconvertível para o seu projecto. Para
ele, não! Em vez do vil metal, o soberano de Portugal e das praças
de Ceuta, Alcácer Ceguer, Tânger, Arzila, Larache, um rei tão africano como
outros, queria o corpo sacrificado que pendia dentro de um caixão há largos
anos, para exemplo do poder e da ideologia religiosa dos muçulmanos, mas de
descrédito para os cristãos.
- Iria pensar no assunto, respondeu o rei de Fez, contrariado. Pela sua
parte, Afonso não queria nem ouvir falar noutra proposta que não fosse a
entrega do ataúde. Ou vinha o esquife ou o rei ficava com menos duas das suas
mulheres e um filho. Finalmente, demonstrando o pragmatismo que o arresto dos seus
familiares obrigava, o senhor de Fez, terminado o período de reflexão, aceitou
as exigentes jogadas de Afonso, pelas significativas razões enunciadas. Tudo
corre como o planeado. Instruídos pelo responsável da missão, todos sabiam o
seu papel, e, por isso, o adail-mor
não precisava de se preocupar. Tinha retardado a viagem para poder chegar a
altas horas da noite sem ser visto, e ainda por cima, por doação divina, o
nevoeiro engoliu o barco logo à entrada da barra. Contudo, era necessário
comunicar com o rei.
Cortando os rolos de nevoeiro que sobrelevavam as águas, saiu da
caravela uma embarcação transportando o mensageiro e a sua besta muda. Chegados
à praia, num salto, o cavaleiro pôs os pés na areia ainda submersa, puxando com
força o cavalo relutante em experimentar a água fria. Já com os pés assentes em
terra firme, mais uma etapa vencida, o homem encheu-se de satisfação por ter
sido o escolhido de Bairros para chegar até à presença do rei, segurando
com força contra o peito, debaixo da camisa, o traslado que o adail-mor lhe entregou, uma jóia de reembolso
mais do que certo. Pôs-se em cima do animal, esporeou-o com a piedade que a
visão lhe concedia, não sabendo ao certo do que tratava o documento nem a fundamental
importância dele. Mas tinha uma convicção. Tudo o que acontecera desde que Diogo
de Bairros falou consigo em Ceuta convencera-o de que a missão proposta era
de grande importância, segredo e de certeza compensadora. Sem desconfiar, não
era essa a sua obrigação, cheirava-lhe a grossa recompensa, e essa era uma presunção
suficientemente motivadora para lhe animar o espírito e aquecer o corpo. Além
disso, a hipótese de estar a cumprir uma missão de transcendente valor para o
rei também lhe dava coragem, numa noite em que os faladores se calavam». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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