Manipulador do tempo. Tempo e Memória
«O historiador é um manipulador do tempo. Prende-o num campo ou castelo
de palavras. E qualquer um o desperta da mortalha das letras, como lembra João
de Barros, com a luz dos olhos ou o chamar da voz. Mas verdadeiramente não
é o tempo que prendemos mas tão-só os acontecimentos, sinais gravados noutros
sinais. O tempo vivido, o tempo de Camões
ou de Bocage, pode ser apreendido
nas marcas da escrita, das ferramentas, das pedras e metais afeiçoados pelos
homens. Por mais que fechemos as mãos, também o nosso tempo se escoa correndo
no corpo, acendendo ideias, agarrando-se aos objectos, a todo um mundo cada vez
mais complexo de sinais sonoros, visuais e mecânicos. Vivemos o tempo que é o
nosso, ele carrega as chaves da compreensão do passado. Vivemos o tempo,
tentamos compreender-lhe o sentido, influenciar a sua marcha.
Sem as marcas dos acontecimentos, o tempo não é legível, mesmo o que
vive na nossa carne, nos nossos desejos, nas nossas crenças, nas nossas ideias
e ideais. Ao fim dos anos, qualquer prisioneiro sabe que o tempo escorre e
morre nas paredes, gasto pela repetição dos gestos sempre iguais. Faltam factos
e coisas que assinalem a sua marcha inexorável. O manipulador do tempo, que é o
historiador, usa ferramentas práticas, as línguas, a Paleografia, a
Diplomática, a Epigrafia, a Geografia, a Sociologia, a Antropologia, o Direito,
a Economia, a Filosofia, a Literatura, as diferentes ciências e saberes e
toda uma panóplia de conceitos como população, forças produtivas, classes,
ideologia, tempo curto, longa duração, que sei eu. E sempre a fita métrica
e o compasso da cronologia. Ela mede e ordena o que parece sem ordem e permite
ver sentidos no que parece não ter sentido.
Todos os objectos marcados pela mão e a mente do homem constituem a
matéria-prima da História. Os restos escritos, monumentais, as ferramentas no
afeiçoar dos campos, o trem da oficina e da cozinha, os rituais da vida, do
lazer, da festa, da guerra e da morte. Parte fundamental dessa matéria-prima
guarda-se nos arquivos, nos museus, nas bibliotecas, nas casas, nas cidades. O
manipulador do tempo não pode viver sem informação, sabe que nunca é bastante e
que corre o risco de sufocar com ela.
O historiador descreve, não ressuscita o que foi. Nunca consegue passar
do conhecer para o ser. Produz discursos com os quais pretende captar na ordem
do intelecto o ser dos acontecimentos. Leibniz escreveu que a História estudava os singulares, opondo-se
à Filosofia que se vinculava aos universais. Mas, para conhecer, também
o manipulador do tempo tem de captar os particulares, como o mesmo Leibniz
sabia, pelos universais. Só através dos universais o processo histórico, a
história real pode ser captada e compreendida, tanto quanto é possível
compreendê-la. Mas se o discurso paira nos universais, se se move num universo
fechado de conceitos, corre o risco de se despenhar contra a montanha oculta
pela nuvem de palavras vazias. Não vê o relevo, os rios, as montanhas, os
oceanos, as cidades, os particulares, os singulares.
Ainda pela própria natureza do conhecimento, o manipulador da Memória
tenta alcançar a visão total mas a sua consciência não consegue captar de uma
só vez mais que os sinais dos pequenos instantes. Quer alcançar o todo mas só o
pode tentar pela parte. Por outro lado, a parte só é possível de ler numa
perspectiva do todo. Um universo diferenciado de artesãos tece e destece a teia
inacabada da História, desde o historiador-formiga,
por vezes esmagado pelo peso de um novo documento, ao alfageme que afia a
lâmina dos conceitos, ao inventor de novos instrumentos, ao arquitecto que, com
maior ou menor engenho, traça o risco, dispõe as colunas que suportam os
tijolos das palavras. O manipulador do tempo vem de uma marcha milenar. Velho guardião
da Memória, irmão da Epopeia e da Tragédia, glorificador da Comunidade e do
Poder, tabelião da verdade consumível ou levita que desce às catacumbas e
liberta verdades oprimidas, o historiador torna conhecido o desconhecido, na
descoberta do erro estende os patamares da verdade. Encontra novos sentidos
mesmo sem sentido no processo humano. Rectifica e altera a visão recebida.
Revela, exalta, incomoda». In António Borges Coelho, O Tempo e os
Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária,
Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.
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