terça-feira, 7 de maio de 2013

Questionar a História. Ensaios sobre História de Portugal. António Borges Coelho. «Mas como narrar os ‘todos os homens?’ ‘Através do típico?’ ‘Como achar o típico?’ ‘Que rejeitar?’ E a fórmula típico não arrasta ainda consigo o problema do acento a pôr nas estruturas económico-sociais, ‘políticas e mentais?’»

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Em busca do conceito de História
«Desde remotos tempos que a lembrança dos feitos do passado funciona como reserva colectiva onde se vão plantar os sarmentos da coragem, onde se pisa o rubro das bandeiras. Dessa lembrança abusam os demagogos e os charlatães mas inspira igualmente os políticos honestos e os poetas. Essa lembrança organizada alimenta a sociologia, a economia, a política, a antropologia. Recolher, organizar, nos seus diferentes domínios, essa reserva colectiva constitui a tarefa das ciências da História. Só há uma ciência - a da História (A Ideologia Alemã). Ela é a ciência das ciências do Homem. Ao reivindicar este papel de charneira das ciências sociais, a história assume então uma evocação imperialista, a sua vocação totalizante.
Mas, dialecticamente, na sua procura de rigor, a História acantona-se, espartilha-se, divide-se em ciências em miniciências: história económica, social, das mentalidades, das instituições políticas, quantitativa, conceptual, história da arte, das ciências, da filosofia, história da História, etc. Mas de que história falamos nós? Da de Collingwood: inquérito, através de provas, sobre as acções humanas praticadas no passado - res gestae - com o objectivo do autoconhecimento humano? Da de Jacques le Goff e Pierre Nora: ciência do domínio do passado e consciência do tempo, como ciência da mudança, da transformação? Da de Louis Althusser: continente das ciências, continente proibido, aberto ao conhecimento pela obra de Marx?
Poderíamos continuar as citações. O vocábulo história aparece-nos, pois, inchado de significados o que torna o seu manejo aberto a muito tipo de ambiguidades. O caminho acidentado que pretendo seguir nesta busca do conceito de História principia com um exemplo que avise o leitor da complexidade da tarefa. Deter-se-á depois sobre a prática actual dos profissionais portugueses de História mostrando com esta prática que a História se faz e de diferentes maneiras. Não se escandalizem os defensores da ciência pura, da história pura, a vida social contamina, sobretudo os mais inocentes... Tentarei a seguir elucidar os conteúdos que se encobrem no vocábulo história.
Mas trata-se apenas de um começo. Este trabalho prosseguirá com a análise dos conteúdos da palavra história e com uma tentativa de definição. Numa segunda parte abordar-se-á a problemática das relações da história com as outras ciências sociais. Finalmente, numa terceira parte, serão lançadas algumas achas na fogueira dos problemas da prática viva dos historiadores, na dos problemas que ele defronta no seu trabalho teórico. Mas estou a transgredir as indicações de Hegel: nada mais impróprio e inadaptado numa obra (filosófica?) do que tratar logo no prefácio do fim e das relações que a obra estabelece com obras anteriores ou contemporâneas.

Uma história exemplar
Iniciaremos esta reflexão sobre a História e o seu conceito através de um exemplo, para nós o mais comum. Assim, todos julgamos compreender o sentido das palavras História de Portugal e, no entanto, não nos situamos todos no mesmo plano de compreensão. Notemos de passagem que História vincula a relação pelo adjectivo ou pelo determinativo: universal, económica, social, de Portugal, das mentalidades. Deixemos também na sombra por agora a História ou, se quiserem, deixemos seguir em surdina no primeiro termo a ideia de narração, conto, de narração-compreensão, de prática-teórica e fixemo-nos no protagonista, no segundo termo, Portugal.
l. O herói, o protagonista desta História é colectivo. Trata-se, portanto, de relatar compreendendo os acontecimentos principais(?), os laços, as cadeias(?) que prenderam os homens e as mulheres que, em grupos coesos e contrários, sucessivamente se afrontaram nestes actuais noventa e um mil quilómetros de comprido. Mas onde pôr o acento? Nos acontecimentos ou nas cadeias? Existem laços que nos prendem com uma necessidade de ferro como pretende Marx? Laços de todo o tipo: económicos, sociais, espirituais? Será possível reconstituí-los encadeados no seu movimento? E quando se fala em grupos que se afrontaram não é já saber afinal uma linha de força central desta História?
2.Dez milhões são os portugueses que hoje vivem nesta faixa ocidental. É de incluir ou não no nosso relato todos os que emigraram e morreram e filharam em terras estrangeiras? É de ignorar como tem sido feito geralmente todo o rio subterrâneo que leva a negar Portugal trocando-o ou fugindo para outras terras? Devemos deixar de fora as comunidades que no exterior se organizaram? Por outro lado, dever-se-ão integrar na História de Portugal as acções e reacções das nações que no passado foram subjugadas pelo Estado português e ficaram sujeitas a laços comuns?
3. Depois que narrar? Os acontecimentos importantes da categoria todos os homens ou só os acontecimentos relacionados com os chefes nominais ou reais? Mas como narrar os todos os homens? Através do típico? Como achar o típico? Que rejeitar? E a fórmula típico não arrasta ainda consigo o problema do acento a pôr nas estruturas económico-sociais, políticas e mentais? Quanto às cadeias que nos prenderam e prendem, como descobri-las? Através dos grupos? Através dos chefes? Através do que disseram os chefes ou os clercs por eles?» In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.

Cortesia de Caminho/JDACT