«(…) O rei embatucou diante das crianças e não pôde evitar a torrente
dos seus usuais horrores. Ó Deus, pensou,
por que ordenaste a minha desgraça? Que fiz eu?! Prouvera à tua divina Providência
ter-se embotado aquele cutelo. Por quê, por quê? Afundou-se por momentos
nas águas nocivas das lembranças e das dúvidas. Vogava nelas uma fauna
carnívora e mesquinha. Parecia nesses momentos perder o senso. Mumificava
apavorado num perfil de pedra, que personificava a dor numa estátua eterna. Ai,
se o pai grego da Tragedia tivesse vislumbrado o perfil de pavor deste nosso
Afonso que peça não teria tirado para a sua história. A filha insistiu em vê-lo
à superfície. - Razoai, senhor! Abandoneis estas crianças à triste sorte do desprezo e do ódio?
- Senhora, ficai em sossego. As
crianças irão ao cuidado do príncipe. Se quiserdes ora falarei com vosso mano
para que nenhum estorvo se lhes faça na sua ida para a corte. - Muito me prazerá
vosso falar. O príncipe em tudo atentará, estou certa. Ide, ide falar-lhe em
mim e nestes pobres filhos meus. O rei passou vagamente pelas palavras da
filha. Fora das ameias da alcáçova, no açougue da antiga construção romana,
ouviam-se os ovelheiros queixosos da falta de pascigo. A primeira sazão entrara
escassa de águas, seca e quente, pouco generosa para o gado. Eram vozes de
aflição e súplica. O rei juntou-se ao coro dos tristes. - Que inditoso se mostra
o existir no trigoso britar de todas as nossas esperanças.
Gonçalo, incomodado por aquela presença de geladas cás, voz
espectral e funda de fantasma, começou a choramingar, procurando protecção nas
saias da cuvilheira. Afonso pareceu então acordar dos seus
delírios de homicida e lembrou-se da filha e dos órfãos do valido desaparecido.
Partiu o rei e tardou o príncipe a chegar. Fora-se entretanto a primeira sazão do
ano, aquela que traz os ardores frios do equinócio; chegara logo depois o calor
abrasivo do estio, que nas plainas de entre Tejo e Odiana pode ser pavoroso como
um incêndio de altas labaredas. Impacientava-se a rainha, mas conhecia os
desassossegos em que o irmão andava. Agora, nas horas de maior angústia, em que
manter justiça não lhe bastava ao olvido dos fracassos, dera-lhe para partir à
desfilada numa montada jovem e desafogada para os lados da Atouguia, no termo
de Alcobaça, onde, já depois da morte de Constança, passara os
secretos e retirados anos do seu enlevo com Inês. Ali lhe nasceram os
filhos e ali conhecera ele o mistério do amor. À beira do oceano, num porto da
portuguesa costa, lambido pelas salsas ondas do desconhecido, sondou o além e
percebeu que uma escada feita da matéria do amor ligava o céu e a terra.
Mandara construir sobre o mar, nas imediações dum rústico lugar chamado Moledo,
um abrigo de pedra e aí se retirara com a amante, vivendo com ela como se
vivesse no Éden terreal. Tudo sorria,
tudo luzia, tudo permanente e intemporal, num mármore colorido e supremamente
aprazível aos sentidos. Era para esse singelo e rude lugar, conhecido na
intimidade por Paço, porque
nele tinham os dois amantes a corte da sua preferência, que o príncipe agora se
retirava em rápidas e furtivas escapadas. Dizia-se que por lá tudo se
conservava intacto, com os viridentes vestidos de Inês pendurados nos
cabides e as suas jóias espalhadas nos estrados. Até o seu cheiro se mantinha
intacto nas peles e nas mantas de lã em que outrora se enrolara nos frios e
húmidos dias do Inverno.
Quando por fim o préstito do príncipe subiu à alcáçova de Évora, dos
grandes incêndios dos dias de Verão apenas se via a erva carbonizada e rasteira
dos campos. A temperatura descera e os primeiros arrepios do segundo equinócio arrefeciam
as noites. À cabeça da comitiva, dando a esquerda ao príncipe, vinha um homem
que cada vez mais lhe andava nas boas graças. Olhando o barrete de veludo preto
adornado de caprichosa pluma que trazia na cabeça, as calças de seda golpeadas,
o largo cinto de pele macia, lavrado a prata, depressa se percebia que se
tratava de rico-homem, a mais alta categoria da nobreza a cavalo de então. Era João
Afonso Telo, filho do antigo valido de Afonso IV e irmão do falecido Martim
Afonso Teles, da família duriense Teles de Meneses. Mordomo-mor da
casa do príncipe, ele acompanhava todos os seus passos e não havia segredo que
com ele não repartisse. Sondava os motivos interiores da sua justiça, apaziguava
as suas dores, partilhava as suas insónias, conhecia as suas solitárias surtidas
às lajes de Santa Clara e ao Paço rústico que ficava além da Atouguia.
Saíra homem aguisado, sages mesmo, destro em pensar as feridas que
tanto torturavam o príncipe. Quando as labaredas ferviam na alma deste, fazendo
dele um braseiro de desconcertos cegos, João Afonso Telo sabia acorrer
com o sopro certo da refrigeração, arrefecendo a temperatura ingente e
diminuindo o impulso destruidor daquele fogo. Um tal moderador fazia-se cada
vez mais necessário junto dum injustiçado como Pedro. Uma vítima da
iniquidade passa de pressa da infelicidade mansa à inconveniência colérica em a
chuva que faz renascer a esperança, a terra estiola
numa gritaria seca de revoltas. O encontro entre os dois irmãos foi peco como um arbusto riçado pelo ar crespo do mar.
Dum lado, estava Maria, com a história magoada da sua vida, cujo epílogo fora a chacina recente de Toro e as
crianças sem arrimo que ali a rodeavam,
e do outro estava Pedro, com o infortúnio e a desnorteada solidão da sua perda.
Não se viam desde os tempos em que Inês, exilada em Albuquerque, na
fronteira de Castela, recebia as furtivas visitas do jovem Pedro. Passara-se isso ainda
em vida de Constança Manuel, numa época em que os enciumados impulsos da
princesa, desejosa de fruir por inteiro o corpo do marido, obrigaram o sogro a
ordenar a expulsão da aia do reino. Depois seria a própria Constança a chorar-lhe a
falta, falecendo, ao que se diz, com o nome de Inês nos lábios chorosos.
Nessa época era o príncipe uma alta torre de rija pedra, encimado por uma
cimalha de fogo e de luz». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de
Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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