sábado, 15 de junho de 2013

A Duquesa de Bragança. Poema em Oito Cantos. José Carlos Gouvêa. «Segredos, que seus lábios não transmittem, o seu perfil austero e magestoso a regia prosápia denuncia, e da nobreza a par do fero orgulho, tem do poeta o sonho, o vago instincto»

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Canto Primeiro
O Regresso do Duque

I
Da gélida mortalha, que te involve,
Ó génio do passado altivo surge;
da gloria d’este povo, que foi grande,
os hymnos um momento audaz desperta.
Dos luzos d'outras eras dai-me o esforço,
prestai-me no meu canto o fogo, o impeto
que as quinas portuguezas sobre os mares
por ignotas paragens dirigia.
Tu idolo prostrado, estro fecundo,
da campa, que três séculos calcáram,
levanta o mareio vulto, o fero porte,
e n'um grito d'angustia aos povos narra
o que foi a nação aventurosa,
qual o arrojo, o poder dos lusitanos.
Proclama ao som das tuhas vencedoras
o terror, o respeito, que no mundo
as nações mais possantes este povo
pequeno mas heroe sob'rano exige.
Desperta do teu somno prolongado,
e a espada flammejante sobre as cinzas
d’esses dias de gloria ergue arrogante.

II
Só tu, que dois colossos reuniste
sobre o throno onde brilha aereo labaro,
onde a c'rôa fulgente de Petrarcha
os vindouros invita a eterna fama;
só tu, que os dois gigantes do talento,
de Lysia padrões d'eterna gloria,
a quem lustros sessenta separaram,
uniste num só elo indissolúvel;
e de louros cercados lá no Olympo
os deixaste formando a luz do espirito,
o génio que preside ás lettras pátrias.
Só tu, que de Camões e de Garrett
o Ídolo formaste d'este povo,
que n'elles sempre vivos tem seus fastos,
repletos de bravura e d' heroísmo.
Só tu meu guia podes ser nas trevas,
que abundam sobre a misera progénie
de vultos, que serão immorredouros
da patria, das nações, no livro aberto.
Oh! Presta-me um momento, (ser não julgo
pretencioso, fero desacato),
a lyra, que pulsou sublime vale;
dá-me o estro, a candura, o sentimento,
uma faisca só d'aquelles fachos,
que o mundo alumiaram com seu brilho,
que aos povos do porvir ensina o rastro.

III
Das quinas o pendão, terror da Lybia,
descendo pelas plagas arenosas,
galgára já por fim além dos trópicos;
das tormentas ao cabo era chegado,
e ovante se implantára em novas terras,
entre gentes, que os filhos d'esta Europa
jamais tinham sonhado. Inda seguia
sob um ceu nunca visto, em novos mares,
do Ganges a buscar as ferteis ribas,
da India opulenta o grande imperio.
E nos mares d'oeste tremulando,
a encontrar lá ia um mundo virgem,
onde surge qual sonho um novo império.
O rei afortunado ao sceptro d'ouro
o oceano acurvara, e com orgulho
no throno foi sentar-se de dois mundos!
De faustosa nobreza rodeado,
do rispido João largando a senda,
o brilho renovou d'aureos califas.
os nobres desterrados avocando
á terra de seus paes. De novo á corte
o mais nobre fidalgo então volvia,
o duque de Bragança, o tenro joven
D. Jayme, que no exilio inda expiava
do seu progenitor rebelde intento.
O duque de Bragança, o alto vértice
da mais alta nobreza lusitana.


IV
Ao despontar da vida, tenro infante,
o destino a tragar o pão do exilio
para longe da pátria o expulsara.
Como a tenue florinha, que da hastea
partida separou turbido boreas
e ao longe da torrente, que rebrame,
tombar foi no profundo, immenso vórtice,
assim, frágil vergontea em terra extranha,
arrastado se viu pela procella,
que seu pae arrojou sobre o patíbulo.
Mas alli, sobre as ondas perfumadas,
nos echos das victorias e conquistas,
robusta vegetou, floriu, gigante.
E agora ao despertar da juventude
á terra do seu berço regressava,
quando já prematuros desenganos
lhe mostráram da vida o negro embuste,
e em tristes, melancólicas, endeixas
trocaram os encantos, as blandicias
que os primeiros vagidos lhe embalaram.
No azul transparente das pupilias
a ternura, o pezar, alli reflectem
suspiros, que seu peito exhala a farto.
Segredos, que seus lábios não transmittem,
o seu perfil austero e magestoso
a regia prosápia denuncia,
e da nobreza a par do fero orgulho,
tem do poeta o sonho, o vago instincto».

In José Carlos Gouvêa, A Duquesa de Bragança. Poema em Oito Cantos, Tipographia e Stereotypia Moderna, Lisboa, 1898.

Cortesia de Stereotypia Moderna/JDACT