O Rival dos Senhores Feudais
«(…) Afonso Henriques aparece como um
chefe impotente e passivo, não só incapaz de castigar a cólera excessiva de um
fidalgo de província mas de tal modo fraco que cede às suas exigências mais
humilhantes. Estas duas anedotas lembram um passo da Gesta, aquele em que Afonso
Henriques foge, derrotado e humilhado depois de um primeiro embate com
o seu padrasto, Fernão Peres de Trava, e encontra Soeiro Mendes,
seu aio, que o vinha auxiliar. O fidalgo pergunta-lhe, em tom autoritário, e
evocando a sua dupla qualidade de aio e de vassalo:
- Como vindes assim, criado e Senhor?
Confessando o infante a sua derrota, disse-lhe Soeiro
Mendes, exprimindo autoritariamente a sua censura:
- Nom fezestes siso que à batalha foste sem mim. Mais tornarde-vos comigo e prenderemos vosso padrasto e vossa madre co’ele.
Segundo o autor da Gesta, a vitória de S. Mamede
não pertence, portanto, ao infante mas a Soeiro Mendes. Também se pode
evocar outra tradição, transmitida igualmente pelos livros de linhagens, que se
faziam eco, sem dúvida de narrativas correntes entre as famílias nobres do
Norte de Portugal que descendiam da alta nobreza galega. Segundo ela. A mãe do
infante, D. Teresa, teria, depois de enviuvado do conde Henrique, casado com
Bermudo Peres de Trava, e a seguir cedido ao rapto de seu irmão, Fernão Peres,
que para isso abandonou sua mulher, e ambos teriam vivido juntos até ela
morrer. Culpada, assim, de incesto, teria depois levado a sua ignomínia até ao
ponto de deixar Bermudo casar com a sua própria filha, juntando assim outro
incesto ao primeiro. Tal seria a mãe do primeiro rei de Portugal. O filho não
podia ser muito melhor.
Pouco importa se estas anedotas têm algum fundo verídico. O que
elas significam é perfeitamente claro: para o fim do século XII e princípios do
seguinte, várias das famílias mais antigas e mais poderosas do Norte de
Portugal, descendentes dessas personagens, que são perfeitamente históricas,
não viam o rei com bons olhos e contavam a respeito dele e de sua mãe as
histórias mais infamantes, para mostrarem que os seus antepassados eram muito
capazes de competirem ou rivalizarem com Afonso Henriques. O que, evidentemente,
contrasta com a atitude dos cavaleiros de Coimbra, que se solidarizavam com
ele, apesar de recordarem os seus excessos e derrotas e gostavam de recordar a
sua severidade para com o clero.
Mais curioso ainda é o facto de esta terceira imagem de
Afonso Henriques ser também conhecida bem longe de Portugal, na longínqua
Inglaterra. Veja-se, com efeito, uma das narrativas fixadas por Walter Map na
sua célebre e estranha obra intitulada De nugis curialium, por sinal num
dos primeiros capítulos, e um dos exemplos
do que constitui o principal argumento de toda a obra, isto é que a corte dos
reis se parece com o Inferno. Omitindo alguns passos de um texto excessivamente
abundante em adjectivos e comentários marginais, eis o essencial do capítulo
intitulado De rege Portigalensi:
- O rei de Portugal, que ainda vive e que reina na plenitude dos seus poderes, tendo sido assaltado por um grande número de inimigos e quase obrigado à submissão, foi socorrido por um jovem de corpo atraente e de belo aspecto, que, pondo-se ao seu lado, se mostrou tão valoroso que as suas empresas não pareciam ser possíveis a um só homem. Este restabeleceu a paz, tal como o rei e os seus súbditos desejavam, e tendo criado com o rei uma justa familiaridade, foi por ele tratado com consideração, ficava ao pé dele, ia ter com ele frequentemente, dava-lhe muitos presentes […]
Mas os magnates da corte, sentindo-se menos honrados pelo
seu senhor do que de costume, pensavam que tinha sido o jovem que o tinha
persuadido a retirar-lhes o favor, e quanto mais o viam a ele crescer no afecto
do soberano tanto mais sofriam de que o rei lhes tivesse retirado o seu: então,
insensatos e furiosos de inveja, procuraram com grande empenho a maneira de
desacreditar insidiosamente aquele que por excepcional valor tinha obtido tão
alta consideração. […] Procuraram o pior tipo de perseguição e atacaram o seu
senhor pelo lado que sabiam indefeso e exposto. Sabiam que o seu ponto fraco
era o dos seus insensatos ciúmes, e mandaram-lhe dois deles que, como os dois
anciãos de Babilónia com Susana,
acusaram a rainha inocente por ter cometido adultério com o jovem. O rei,
ferido no coração num ponto em que não estava protegido pelo escudo da
sabedoria, sofreu uma agonia de morte, e com cega precipitação, ordenou aos
próprios autores da acusação que punissem o inocente sem piedade e em segredo […]
In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação
Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa,
ISSN 0871-7486.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT