In Memoriam do papa João XXIII
«Que, através de todas as manifestações do seu pontificado e, em
especial, em sua última e luminosa Encíclica, Pacem in Terris, procurou
dulcificar a amargura espiritual da infindável legião das gentes humilhadas e ofendidas, que têm fome e sede de liberdade, de justiça, de pão, de educação,
de segurança e de consideração social,
instilando em seus corações o conforto de uma esperança. A ele, que, para
conseguir tão nobre objectivo, não hesitou em castigar a filáucia de ovantes
disfrutadores de uma Autoridade e um Poder, instituídos por Deus como condição sine qua non de paz e progresso nas
sociedades humanas, mas de cujo exercício esses hierarcas nem sempre são dignos, por não
saberem manter-se dentro de moldes sensatos e respeitadores da pessoa humana.
A ele, que, serenamente, inseriu nesse excelso documento, entre
incontáveis verdades, as que, a seguir, se transcrevem:
- Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano: nela vêm as pessoas coarctada a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a procurar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento;
- A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um acto de violência;
- De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil constituída para o bem comum de todos, verdade já enunciada pelo papa Leão XIII;
- A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres;
- Exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos. Atesta a experiência que, em faltando por parte dos poderes públicos uma actuação apropriada com respeito à economia, à administração pública, à instrução, sobretudo nos tempos actuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo o seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever;
- O poder judicial administre a justiça com imparcialidade humana, sem se deixar dobrar pelos interesses de uma parte;
- O sucederem-se os titulares nos poderes públicos impede o envelhecimento da autoridade e assegura-lhe a renovação de acordo com a evolução social;
- Um acto de grandíssima relevância efectuado pelas Nações Unidas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem... Contra alguns pontos particulares da Declaração foram feitas objecções e reservas fundadas. Não há dúvida, porém, de que o documento assinala um passo importante no caminho, para a organização jurídico-política da comunidade mundial. De facto, no modo mais solene, nele se reconhece a dignidade de pessoa a todos os seres humanos, proclama-se como direito fundamental da pessoa o de se mover livremente em busca da verdade, na realização do bem moral e da justiça, o direito a uma vida digna e defendem-se outros direitos conexos com estes.
A essa figura contemporânea, com palavras do tempo presente, que
Portugal saiba compreender e aplicar, sem tortuosos desvirtuamentos e sem
temor».
In Cunha Leal, Cântaro que vai à Fonte, Coisas do Tempo Presente, Sociedade
de Língua Portuguesa, Edição do Autor, Lisboa, 1963.
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