A
Tomada de Ceuta
«(…) Anoitecia;
a penumbra do crepusculo assemelhava-se a um phantasma estendendo-se no quarto
da moribunda; para o poente uma lividez sinistra era a coloração do horisonte;
as empenas das portas rangiam com a ventania forte. - De que lado sopra o
vento? - perguntou a Rainha.
D.
Duarte, carinhoso, a seu lado, respondeu: - Do Aguião, senhora. - É bom vento
para a vossa partida. - Senhora, sim. - Pois ireis em dia de San Tiago. E
cerrou os olhos, como que a adormecer, sorrindo.
No
dia seguinte o momento fatal approximava-se. O monarca João entrava no quarto a
estalar de soluços; os filhos levavam no para fora, consolando o; D. Filippa
dirigia ao esposo um olhar de indizivel dôr, não podendo morrer. Os Infantes
disseram ao pae que se retirasse; que se poupasse a tao grande dor. Reuniu-se
conselho e deliberou se que o reo João fosse para Alhos Vedros. Amparado pelos
filhos veio o heroe de Aljubarrota receber o ultimo abraço da esposa. Como
louco, montando a cavallo, fugiu depois desorientado. E D. Filippa, de costas,
no leito, mãos erguidas sobre o seio, tinha visões mysticas; apparecia-lhe Nossa
Senhora a chamal'a, la do céo. E a tremer de goso a sua voz dizia , a custo: - Grandes louvores sejam dados a vós, minha
Senhora, porque vos prouve de me virdes visitar do alto. Mudaram-a de
cama, para morrer; commungou; foi ungida; ouviu rezarem-lhe em torno ao leito o
officio dos mortos e finou-se. E os Infantes, frontes curvadas, lacrimosos,
sahiram um a um do aposento. Na corte tudo foi tristeza; e até deu-se a
coincidencia de n'esse dia da morte de D. Filippa haver um eclipse de sol, o
sol ser cris, como então se dizia.
Depois
dos funeraes, comecou a correr voz que a morte da Rainha era agouro do mau
successo da empreza. Para que servia
tao grande armada? murmurava o povo. No emtanto as galés e naus,
fundeadas no Tejo, velas colhidas, sem flammulas nem galhardetes, a marinhagem
n'um silencio triste, esperavam. Mas, de repente, dias depois do fallecimento
de D. Filippa, içaram se nos mastros balsões e divisas, começou a azafama na multidão
de galeotes e pitintaes, tangeram garridamente as trombetas, em ar de festa. O
povo de Lisboa correu a beira do rio, espantadissimo. E no mesmo instante
appareceu rio abaixo a galé do infante Henrique e n'ella o mesmo Infante, todo
vestido de gala, e da mesma forma seus escudeiros e remadores. - O nosso Rei
perdeu o siso! - diziam uns aos outros com espantos. - Sao artimanhas do Prior!
- observava um, desconfiado. - Peste para elle! - rugiam alguns que ouviam o
dito. E todos desapprovavam o proceder do Rei e dos Infantes. João I appareceu
depois tambem a desembarcar no Restello; viera na galé do conde de Barcellos. Multidão
enorme accorreu á praia, anciosa, de noute, com tochas. Sempre era certa a
partida. Para que? inquiriam
uns. E para onde ?
interrogavam outros. E as almas retrahiam-se com o vago terror de perigos
imminentes. E como a peste e fome flagellavam, e a Rainha havia morrido, e o
sol estivera cris, todos diziam que o
rei João ia buscar a perdição sua e do reino. Effectivamente ia ter lugar a
partida da expedição.
Duvidara
se algum tempo d'ella, após a morte de D. Filippa; reunira-se conselho, dividiram
se as opiniões; sete diziam que se fosse á empreza, outros tantos que ella se
adiasse. Pertencia a estes o Condestavel; João I e o Infante ficaram admirados
da prudencia do heroe. Mas o infante Henrique todo se empenhou pela ida; lembrou
as ultimas vontades da Rainha - ella dissera que partissem em dia de San Tiago;
suggeriu a ideia de se vestirem de gala para levantar os animos: observou que
seria um desaire deixar de executar immediatamente o que de tanto tempo já
vinha preparado… João I escutou e assentiu no que Henrique lembrava; era o
filho que mais se parecia com elle, bem o sabia. Todos depois apoiaram o
decidido pelo Rei. O infante Duarte, esse, mais sentimental, guardou silencio,
e sempre triste pensava na morte.
Com
toques de trombetas e clamores, parecendo alegres, abalou a armada Tejo a fora,
a 24 deJulho; e como um bando de gaivotas voando baixas, rente á superfície azulina
do mar, os navios foram traçando uma curva alvejante até perderem-se de vista
ao longe, encobertos pelos fraguedos de Cezimbra. Foram seguindo ao sul até á
abra de Lagos. Fundearam ahi e o Rei desembarcou. Fr. João Xira,
eloquentemente, em sermão, revelou ao exercito o fim da empreza e em mais de um
coracão houve um descoroçoamento. Combater
em Africa?! Era a primeira vez; havia um certo receio; eram inimigos
desconhecidos da geração do Mestre de Aviz os infieis.
E de
noute, ao scintillar das estrellas, pensava-se com saudade nos lares distantes.
Era preciso, comtudo, partir; e assim todos fizeram. Foram a Faro e ahi, de
noute, deu-se o seguinte caso na galé do infante Henrique; deitara-se o infante
Duarte na coberta, a dormir, pois era grande o calor; mas acordando casualmente
notou que a lanterna do barco se incendiara; ergueu-se o Infante e dirigiu-se a
chamar o irmão Henrique, que immediatamente acudiu e lançou a lanterna ao mar,
queimando-se nas mãos quando isto fez. No sabbado foram lançar ancora em
Algeziras; timidos, os mouros d'ahi enviaram a João I seus presentes. E no
emtanto a armada aproou ao Estreito, em comprida fila, como uma serpente. Passou
ella, em meio de nevoas, por defronte de Tarifa; aqui imaginou-se que pelo mar
deslisava uma ronda de phantasmas.
- Que
e aquillo? - inquiriam, das muralhas, olhando o mar, os de Tarifa. - Uma
armada; decerto a do Rei de Portugal. – Impossivel - affirmava o fronteiro
Martim Fernandes de Porto Carrero - nem todas as florestas de Portugal podiam
dar madeira para uma frota tão numerosa. Mas um portuguez, que alli se achava,
insistiu: que sim, que era a frota. E
effectivamente, desprendendo-se os sendaes do nevoeiro, surgiu toda a armada,
passando em frente, como um traço branco a regrar o horisonte. E assim foram
indo até Malaga.
Em
Ceuta, Zala-ben-Zala, o scheik;
mandara convocar os kabilas, receioso
da armada dos portuguezes; e entre a multidão dos mouros os terrores agoureiros
perpassavam frios a gelar as almas; no Ramadan a lua estivera tres partes cris, e na outra tivera perto de si uma
estrella enorme; havia alguem que sonhara vêr a cidade toda recoberta de
abelhas; outro imaginara tambem em sonhos ver chegar pelo Estreito um leao
coroado, com muitos pardaes a seguil'o. Outros mais fallavam em signaes
precursores de desditas espantosas. E o scheik;
mandara convocar os astrologos, sabedores das cousas do céo e dos futuros. Veiu
a conselho o venerando Asmed-ben-Sille, almocadem
de Tunis; durante duas horas o velho sabio nao pronunciara palavra, e a final,
instado, só dissera que haveria sangue… porque a estrella Orion se mostrava em
forma de espada. E tudo tremeu de inquietação».
In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Memória
Histórica, Primeiro Pémio de Concurso no 5º Centenário, Typografia do Commercio
do Porto, G 286, H5A53, Porto, 1894.
Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT